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quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Maria

Os olhos castanhos dela me encaravam através do vidro de cristal. Estávamos frente a frente, estudando a perfeita igualdade de ambas. Mas havia nela uma jovialidade que não me pertencia, um certo prazer nos olhos, um brilho de inocência nas pupilas negras. Recusei-me a continuar olhando para aquele rosto estranho: era demasiado instigante pra mim. Mas ela, teimosa, não desviava o olhar. Sorria para mim com os lábios travessos de quem planeja alguma arapuca e se vê satisfeito desde o pânico precoce na expressão da vítima. E, obviamente, eu tinha esse pânico precoce. Medo do que ela poderia me mostrar ou fazer. Aliás, onde estavam as pequenas rugas dela que não ali junto das pontinhas dos olhos?

Maria, Maria apareça aqui logo, preciso de tua ajuda. Onde diabos aquela negra se enfiava quando se precisava dela?

"Que quer de mim, senhora?" Maria apareceu, de sobressalto, com as saias sujas seguradas pelos dedos finos. Olhava-me com um misto de impaciência e curiosidade. Era uma boa criada, pena que às vezes cismava em pensar demais.

"Quero que me alcances o rímel."

Dito isso, ela prontamente o pegou na cabeceira que estava a 45 centímetros de mim, tentando esconder uma careta de decepção.

"Posso voltar senhora?"

Olhei de novo para o vidro de cristal na minha frente. Era tão pequeno, que eu podia segurá-lo com as mãos de modo que a vista de meus próprios olhos se tornasse mais clara, mais acessível. Engraçado isso, a gente tentando ficar mais perto dos nosso próprios olhos. Uma coisa bem complicada de se pensar, quando se para realmente pra pensar. Mas eu não sou uma dessas mulheres que se casam e ficam a vida inteira pensando em coisas vãs. Isso é coisa de negro fazer. E se a negra na minha frente tomasse conhecimento das minhas dúvidas, talvez as roubasse pra si. O que não era uma má ideia.

"Senhora, eu posso voltar para a cozinha?" Repetiu ela. Maria era muito impaciente às vezes. Não sei que que me deu na cabeça quando fui compra-la.

Mas onde eu estava? Ah, sim, nas rugas.

Olhei impaciente para aquele vidro estranho que chamavam de espelho. E a menina continuava lá com aquela boca vermelha e sorridente. Ah e que dentes! Em pensar que se parecem tanto com os meus... Então me veio um entendimento dentro da alma: Ali era o meu espírito! Sim, sim, meu espírito! Oh que descoberta a minha, sou genial, sou genial, sou genial! Será que mulheres podem ganhar um prêmio de gratificação pela inteligência?

"Senhora, eu não quero parecer impaciente ou mal educada, mas se eu não voltar pra cozinha agora, a comida vai secar e talvez pegar fogo..."

"Já que esta tão apreensiva, então vá. Vá, faça suas coisas de negra e depois volte. Quero lhe mostrar uma coisa, uma coisa que acabei de descobrir. Vai negra imunda, vai, mas não se esquece de voltar."

E ela foi.

Maria sempre foi uma boa criada, mas ainda era impaciente e mau educada também.

Mas essa menina do vidro era eu? Ou o espírito da menina que me encarava era meu espírito mais jovem? Ou eu que tinha rejuvenescido?

Oh, oh outro entendimento! Sou tão genial... Com certeza isso aqui não é um espelho comum. É um espelho de rejuvenescimento. Albert Einstein não sabia de nada! Oh que filosofia tola aquela que se baseia nos cálculos. Nunca precisei de cálculos e no entanto sou um prodígio da ciência, da astronomia, da medicina, das artes e de todas as ciências do século! E cadê aquela negra pra me aplaudir?

"Ô Maria vem cá que eu tenho que te mostrar uma coisa! É meu espírito Maria, é meu espírito!"

Negros são todos malucos. Sério mesmo. Depois que vi a Maria entrando no meu quarto com aqueles olhos esbugalhados e os dedos finos na saia suja e o cabelo emaranhado num coque mal feito, pude perceber que era louca. Louca mesmo. Até despedi ela depois daquele dia. Ora, pois a doida da Maria veio me dizer que sempre via espíritos e que sabia que o meu estava ali. Que burra, que burra... Ah pobre negra... Que será que ela fez pra ser tão burra?

Só eu via meu espírito porque meu espírito estava dentro do espelho. Tu não vês negra tola? Eu perguntei. E ela só disse um "Não, senhora". E daí eu mandei ela embora. Ela ficou chorando dizendo que não tinha pra onde ir. Mas a verdade é que a Maria sempre foi muito impaciente, e muito maluca e muito ambiciosa também. Ela veio me dizendo que aquilo era um tal de reflexo da luz e que eu só estava olhando pra mim mesma. Que absurdo! Ela queria roubar minha ideia, disso eu tenho certeza. Mas é que a Maria sempre foi muito invejosa e muito metida a inteligente. Daí eu fiz uma coisa que só mulheres ricas e prodígios que nem eu fazem: Quebrei o espelho. Fui ali, bem no meio do problema. Aquele espelho horroroso e a Maria ensanguentada. Ah Maria... Que negra mais assustada. Foi só uma batidinha Maria, só uma batidinha.

Hoje eu entendo porque ela foi parar no hospício. Era doida a negra. Ficava inventando histórias de espíritos e de reflexos e de comida e depois ainda tentou tirar a própria vida. Que que ela tinha de deixar a cabeça embaixo do meu espelho de propósito? Quebrou o espelho e quebrou a cabeça. E foi pro hospício. Até hoje não entendo. E nem quero, por que pensar essas coisas é coisa de negro. E eu sou branca. Com sangue azul e tudo. Sério mesmo.

Fatalidades

21/10

22:45 - Oi, eu sei que tu está aí.

22/10

20:08 - Oi, boa noite, amor. Tudo bem?

23/10

14:00 - Amor, me responda.

14:01 - Beto, me responde eu sei que tu tá aí.

24/10

16:07 - Roberto eu te vi hoje na rua com ela. Ela te faz feliz?

16:07 - Eu te amei tanto... Por que tu me trocou?

25/10

15:54 - Sabe, Roberto eu esperava mais de ti. Por que tu fez isso? Eu sempre fiquei aqui por ti, eu sempre fiquei...

15:54 - Eu não aguento mais. Adeus.


 

25/10

16:05 - Mari? Tu sabe que o Norberto voltou pra cidade né? Aquele meu irmão gêmeo que vive trocando de namorada, ele tá com uma loira esquisita agora, mas o importante é que não era eu.

16:10 - Acredita que eu fui assaltado segunda-feira e me levaram o celular? To morrendo de saudade de ti! Meu computador estava no concerto, mas agora consegui voltar.

18:00 - Quando ler isso me manda uma mensagem tá?

19:00 - Amor?


 


 


 


 


 


 


 


 


 

Jornal do dia – Manchete: Mariana Velloso Dutra cometeu suicídio após ter flagrado seu namorado com amante. Mais detalhes na página 35.

É castigo ou não é?

A gente fez questão de se conhecer depois que já se amava. Não sei direito como explicar isso, mas vou tentar ser bem direta: Eu o amava antes de conhecê-lo. Acho que tem mais ou menos a ver com aquela história de destino e tal, quando dizem que nossos caminhos já estão cruzados e simplesmente nos encontramos por que Deus quer ou porque tinha que ser assim ou porque já estava escrito desse jeito. Não sei, mas sei que o amava. Desde aquela unha torta do minguinho do pé direito até o último fio do cabelo castanho claro que sempre faz questão de se rebelar quando o dia fica chuvoso. No fundo eu sei que sempre esperei por ele. Sabe, tipo quando a gente encomenda algo na pizzaria e depois de uns minutos os caras batem na nossa porta trazendo exatamente tudo que queríamos. Tá vou ser sincera: não foi tudo que eu queria. Pra falar a verdade, eu sempre preferi homens mais baixos e com o cabelo preto. Ah e não se esqueça da pele limpa – e quando eu digo isso estou me referindo àquela barba rala que dá uma aparência de mendigo e que, honestamente, eu nunca gostei muito. Quer dizer, isso é tipo quando a gente pede uma pizza metade quatro queijos, metade prestígio e recebe uma metade alho e óleo e metade banana com canela. Mas aqui está o que eu recebi: Um homem de cabelo castanho claro quase louro, uns quinze centímetros maior do que eu e aquela linda barba de mendigo. Deve ter tido algum problema com o meu pedido, talvez eles tenham confundido com um de uma amiga minha que sempre amou caras quase louros e pizza sabor banana, mas eu não me importo mais com isso. Na verdade eu fiquei puta. Sério, fiquei puta mesmo quando vi esse homem com quinze centímetros a mais do que eu tirando o coração de dentro do meu peito e guardando dentro da gaveta do criado mudo dele. Um criado mudo muito feio, se você quer saber. Mas eu não me importo. Tudo que me incomoda é que ele guardou aquele órgão meu lá e agora eu não sei mais como pegar de volta. E sabe, isso irrita às vezes. Tipo, fala sério, o cara é um completo idiota. Que tipo de homem aos 23 anos de idade ainda não decidiu sobre qual faculdade cursar e fica olhando com cara de idiota para aquelas pranchas estúpidas em lojas de surf? Nada contra surfistas, mas é que às vezes é bom termos outros interesses, sabe. E a propósito, ele é muito imbecil. Sério. Que tipo de homem aos 23 anos que nem faculdade concluiu ainda, consegue ouvir bandas daquele tipo? Quer dizer, ele escuta Armandinho. Porra, ele me fez até uma serenata com uma música daquele cara. E eu nem sabia a letra, por que aquilo não é música. E quer saber de mais uma coisa? Ele me irrita. Deus, como ele me irrita. Que homem mais burro, estúpido, arrogante, ingênuo, confuso, indeciso, orgulhoso, egocêntrico, vaidoso, patético, infantil, irresponsável, grosseiro e completamente, totalmente insuportável. Isso só pode ser algum tipo de castigo. Não, sério, Olha bem pra minha cara e me diz: Isso é um castigo ou não?

Sei lá, eu nunca fui uma mulher crítica. Nunca falei mal de ninguém e tal. Tá, só quando a pessoa merecia. E tudo bem, pode me chamar de bipolar. Mas aquele homem, ah ele me tira do sério. Mas eu já amava aquele imbecil antes mesmo de tê-lo visto. Agora tu me entende? Quer dizer, se não fosse amor, eu já poderia ter pegado meu bom senso minha capacidade mental e minha dignidade e um ônibus econômico pra São Paulo, e ficar lá tentando ganhar a vida com um diploma estúpido de publicidade.

Mas não, aqui estou eu. Completamente apaixonada por um imbecil. E o pior é que até isso eu amo nele. Agora olha bem pra minha cara, mas olha bem mesmo e me diz: É castigo ou não é?

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Tuesday, 03:00 a.m.

There is some monsters. To be more specific, are monsters in my bed. Various of them. And on my table, aren't books. Are just demons. And I'm screaming. "God, God, where are you? God?"

Are many monsters, so... What will I do now?

Are monsters in my bed. And I just can't wake up and this make me so sad... What I will do now? God will save me? Hey God, save me, save me... Please?

So, I finally agreement. And boy, it's hot here. I'm saying, very, very hot. You know? As an oven. And has water on my body. And has insects on my room. And... wait... what hell is that? Is so darkness here and so silent... Have monsters here! And... I just can't fight, I just can't scream anymore and... for some motive, I'm speaking in English with myself.

So, I feel my telephone on my left and I can see my salvation! Yeah, yeah, I'll get it!

I remember a voice on my head, that says: "Call me, whatever what happening or what hour supposedly to be. I'll be there for you, always." And... I call.

In the other side of the phone, one sound comes. He just shuts down. But I need this, I need so... Who knows if a send a message?

"Hey, can you speak with me?"

Send this message.

Message is send.

One, two, three, four, five, six, seven, eight, nine, ten... OK, now I'll call again.

In the other side of the phone, has a nicest and sleepy voice.

God, I shouldn't have turned to him.

Really.

"Hey, what happening? Are you ok?"

No.

"Yes, I just had a bad dream, you know?"

And now, what you have to say, idiot? Ok, let's see this: "Hey sweet, how are you? I'm just calling to say that you're crazy and I love you for this!" or "Hey idiot, I'm just passing a hoax, ha ha" or "Hey, I'm sorry for this and for the hour, but I'm afraid and scared. Can you hear me for few minutes?"

Ok, third option. And he says "Ok... But, what happening? I thought that you have said that we won't might speak anymore..."

I said that? But hear him is just so comforting... Ok, he's right. Hang up the phone and go sleep, stupid. What kind of girl am I so? I'm saying, hey, you don't have to call to your ex boyfriend to you can sleep. Do you?

No, no, no. It's wrong. Very, very wrong.

"Look, I'm sorry, ok? I really shouldn't call to you. Good Night."

He must be sleeping standing on the kitchen floor now. I know that. I know him. And I'm just the upset girl that calls a guy in the middle of the night to say "hey I'm scared, can you listening to me?"

What's my problem?

Really, someone else can beat me, please?

But when I finally saw my mistake, he just says: "I love you."

And in this moment, my world falls. With my tears. But he don't need know this. No... He really don't need...

I wanted to say:" Thanks for put the shadows and the monsters away from me. And thanks for be who you are. And thanks for stay here for me".

But I don't say this. I can only say "bye".


 


 


 


 


 

domingo, 27 de novembro de 2011

Epílogo

Eles taparam seus olhos com uma venda, entupiram seus ouvidos com lixo e lavaram sua boca com ácido.

O que aconteceu depois, foi apenas consequência disso.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Choremos

Sentia-me só e cansada. Não estava propriamente inclinada a ter estudos mais complexos de um assunto que não via interesse algum. E isso se tornava tão cansativo e repetitivo quanto à aula escassa de inglês que meu dinheiro poderia pagar. Corrijo-me: o dinheiro de meus responsáveis. Eu e essa injustiça de ser estudante, na minha trágica emoção de manter-me dependente dos mais velhos. Tão propensa a rupturas, tão cuidadosamente triste. E chovia... Chovia... Mas eu não tenho guarda-chuva, não tenho um casaco quente e não tenho pra onde correr, então mantenho-me forte e determinada em baixo dessas gotas frias de novembro. Alguém chora lá em cima, vês? Alguém está chorando toda sua dor, enquanto eu, ignorante do que acontece, recebo essas lágrimas puras do ferimento abatido. Mas por que será que choras? Será dor de dente? Dor de cabeça? Dor de amor? Não... Não quero que seja dor de amor. Essa dói demais e demora demais para cicatrizar. Portanto, sem dor de amor, por favor. Prefiro pensar que é uma dor insuportável de dente, algo impossível de conter dentro de si e que por isso causa a irritação nas órbitas do ser misterioso que chora a cima de nossas cabeças. Chora então, oh gigante tristonho. Eu não te prometo nada, mas asseguro que ficarei aqui, tentando desvendar-te enquanto acolho para mim a tuas lágrimas. Mas por que elas têm de ser tão frias, tão cortantes? Sinto frio, não sabes? Sinto frio e é por culpa tua e da tua dor suplicante. Mas não te culpo, por que há certa felicidade nisso. Não para ti, mas para mim. Sinto-me idiota, mas não posso simplesmente ignorar o sentimento de compaixão que me sobressalta ao peito: felicito-me! Sim, sim sinto-me feliz em sabê-lo triste.

Oh, não vês então o que eu vejo? Tu és um gigante, uma criatura muito mais forte do que eu, e, ainda assim, choras. E se tu, que és gigante e não teme nada de maior que exista nesse mundo pode ter o coração destruído em pedaços, que direito tenho eu de punir-me por sofrer? Ah, engano-me, é dor de dente. Tens razão, todos nós temos dor de dente. Mas não temos culpa se de repente o dente é engolido pelo coração e os dois se partem em uníssono na celebração lamuriante da dor. Na minha compaixão, sofrerei contigo meu amigo. Não te conheço e nem sei que tipo de criatura realmente és, mas se insistes tanto em chorar, chorarei junto a ti, como a boa amiga que te serei.

Choremos, choremos.

Onde estás?

Não adianta, não dá pra ler nada. Eu quero escrever. Ai meu Deus, eu quero escrever tanto, a ponto de meus dedos sangrarem de tanta força. Eu quero chegar no fim do dia com o corpo exausto e o coração palpitante de alegria naquele sentimento abençoado de sublimação. E há nesse exercício um prazer tão complacente, tão misterioso, que me engana, me grita, me usa. E eu, nos recônditos do meu estômago, escondo borboletas que brincam enérgicas na possibilidade de se tornarem bailarinas da minha próxima peça. Oh Shakespeare, onde estás tu para ser o meu Romeu moderno? Oh Lispector, onde estás tu para ser minha dama de honra?

E eu pego o livro com as mãos sedentas, mas não, não consigo me concentrar, não dá, não dá! Quero criar. Quero escrever. Sentir que faço alguma coisa. Sentir que dentro, lá no fundo mesmo, se revoltam figuras e mundos e explodem coisas que precisam ser exteriorizadas. Era isso. Era o isso o que me faltava. Estava triste e agora não estou mais. Oh Goethe, onde estás tu para sofrer as desilusões comigo? Oh Machado, onde estás tu para me pôr de volta à realidade? Quero, quero. Quero tanto... Que não sei direito o que querer.

Seria bom

Não me lembro quando, mas sei que vai ter um show de rock clássico num lugar que chamam de "barkhouse". Disseram que ia ser bom. Tá, na verdade não disseram nada disso, mas eu disse a mim mesma que seria bom. Uma espécie de amizade crítica que criei para mim mesma. Como é mesmo aquela música que diz algo assim: "Olá, aqui é sua mente dando a você alguém com quem conversar, olá...". É, a música é algo assim e faz total sentido pra mim. Não acho que seja loucura, mas já que sou um ser social que tem medo de sociável, crio amigos. E seria bom se pudéssemos sair de vez em quando, tipo pra ir na casa do barkhouse. O que você acha?
"Acho que seria bom."
Então vamos?
"Vamos."

E fomos. Eu e meus dois amigos. Ou amigas. A verdade é que ainda não decidi. Tá são iguais a mim, porque só assim é que vão poder saber o que eu falo em pensamento sem que eu precise andar por aí falando alto. E fomos. Bebemos. Voltamos. Ê vida boa hein, amigos?
"Nem me fala"
Mas sempre tem alguém pra estragar a felicidade alheia, como por exemplo aqueles amigos de verdade, que conseguimos fazer no exterior. Não, não digo do exterior do mundo, mas... ah acho que é algo assim mesmo. No exterior do nosso mundo. Sabe, de dentro pra fora? Os amigos de carne e osso e veias e tendões. É, esses aí mesmo. Eis então que um desses chegou na minha casa e disse, como se tivesse o direito: "Por que tu falas sozinha?"

Perguntou na inocência mesmo, com os olhos arregalados e tudo. Se eu fosse o Stephan King poderia dizer que até vi o espectro dela mudar de cor e tal, mas eu não sou desse tipo de gente paranormal. Sou apenas alguém que enxerga meio borrado graças à miopia e não consigo ver o espectro de ninguém. Mas a verdade é que aquela pergunta me pegou de surpresa. Eu não falo sozinha!
"Tu falas sim!"
Não falo.
"E o que tu estás fazendo agora?"
Mas isso não é da tua conta, e para de ficar conjugando o verbo corretamente. Isso é coisa de viado.
"E além de mentirosa, também é preconceituosa?"
Não! Quer calar essa boca?
E eu disse isso em voz alta. E a minha amiga - aquela de carne e osso e tendões e olhos arregalados - ouviu. E parecia que ela estava assustada. Não sei, não entendo o comportamento de gente. Mas sei que ela ficou assustada. "Você fala sozinha mesmo!"
E aquela discussão, que antes eu discutia com a cópia invisível de mim, se repetiu. Mas dessa vez eu nao aguentei. Eu não falo sozinha e se eu falo ela não tem nada a ver com isso. Não é?
"É".
Então, que que eu faço?
"Mata ela."
Mas e se eu for presa?
"Não vai ir, é só matar. Daí a gente ve se espíritos existem ou não..."
Ah, eu não sei...
"Não mata!"
"Mata sim!"
Não sei direito como tudo aconteceu tão rápido depois, mas na hora me lembrei onde estava o revólver do meu avô. E era um calibre 38 e tal. Uma bala que explode por dentro do corpo e fazia a pessoa morrer antes de saber que tinha morrido. Mas morrer não parecia tão ruim... Talvez ela vivesse, né?
"É"

Então eu matei.

Não sei, não entendo direito. Mas ela não gritou nem nada, só continuou ali, com aqueles olhos arregalados e uma poça de sangue embaixo do furo dentro do crânio. Mas eu não vi espírito nenhum, nem luz nenhuma. Nem escutei o barulho do trem ou coisa do tipo. Talvez morrer seja só morrer. Né?
"É"

Seria bom se ela tivesse ido no barkhouse com a gente, afinal...

Raimundo

Era uma vez um garotinho.

Tão bonito, tão pequeno.

Mas sentia que morria pouco a pouco na sua vida inocente de criança. Não queria morrer, mas morria. E quando olhava pro céu, pedia coisas para um ser que diziam que cuidava dele. Como chamavam mesmo? Ah, é. Chamavam de Deus. Então ele pedia a Deus um sorvete. Pedia a Deus um carrinho. Pedia a Deus um boneco de guerra. Só que as coisas não caíam em suas mãos como ele queria que caíssem. Daí ele foi pra catequese. E lá diziam que Deus era bom e que Deus o protegia. Mas se o tal de Deus era bom, por que é que não tinha mandado o sorvete e o carrinho e o boneco? Daí diziam que Deus escrevia certo por linhas tortas, e que ele, na sua imensidão misteriosa, sabia exatamente do que precisávamos antes de pedirmos. Mas isso não mudava o fato de que o sorvete e o carrinho e o boneco de guerra realmente não tinha caído do céu.
Daí o garotinho largou a catequese por que sentia que morria por dentro. Ele morria toda vez que pedia uma coisa a Deus e Deus não dava a ele. Então ele deixou de acreditar em Deus. E achou tantos, tantos amigos que também não acreditavam, que finalmente se sentiu inserido em algum lugar. O bom é que o garotinho passou o resto de sua infância, adolescência e amadurecimento sem querer saber do tal de Deus. O triste é que, a cada dia, sentia que estava morrendo por dentro, sentia um fedor estranho de dentro do seu estômago. E percebeu que estava doente, e o fedor era podre e a morte estava perto. Daí vieram o padre, o pastor e a freira e até uma senhora que era sua vizinha e tinha mania de acreditar nas coisas.
E ele nao quis saber de nada do que eles tinham pra dizer. Fechava os ouvidos e trancava os olhos com os cílios, numa forma desesperadora de se manter na sua inteligência.
"Mas por que tu nao queres saber de nada, Raimundo? Deus salva, Deus salva!"

E Raimundo achava graça.

E na sua desgraça engraçada, ele morreu.

Marx e Durkheim

Eu definitivamente não estava afim de escrever. Mas era obrigada por todo esse bando de obrigações estúpidas nas quais estamos inegávelmente inseridos. Aliás, de que me vale o conhecimento de Marx ou Durkheim? São burros e idiotas. Sociólogos estúpidos que tentavam entender o mundo num ciclo propenso à destruição. Mas, querendo ou não, eu os conheço. Não como alguém que estudou por décadas sobre suas vidas, mas como alguém que leu alguns textos xerocados no prédio mais barato da universidade, apenas para ter na cabeça imunda algumas informações baratas sobre duas pessoas que podem me fazer ganhar aluns pontos em uma prova qualquer da minha maldita cadeira de sociologia jurídica.

Daí eu fico assim: parada. Aliás, de que me vale conhecer Marx e Durkheim? Não, não me vale nada, além de um zero vírgula tantos naquela prova, mas eu já disse isso. E quem se importa?
Não vale a pena gastar minha imaginação falha em palavras medíocres de um texto de terça-feira. Aliás, o que Marx e Durkheim diriam de mim? "Bela covarde você, hein amiga".

Ou talvez dissessem isso em alemão o que os tornaria claramente mais elegantes e clássicos e modernos e estupendos do que eu na minha insignificância do português errôneo desse país de terceiro mundo.
Ah, quer saber? Acho que na verdade eles se matariam. É, se matariam mesmo. Quando vissem que a saúde e o bem-estar público são menos importantes do que a economia capitalista de um país dito democrata. Não temos estrutura, porra. Não temos. Daí vem todos aqueles lindos artigos sobre democracia e igualdade e garantias fundamentais. Pro espaço com garantias fundamentais. Me ensinam todos os dias lorotas de que somos iguais e de que temos direito à moradia e à proteção e a um bando de frescurice política pra manter as boas aparências. Daí vem aquela outra estupidez jurídica que chama de "formal e material". Pro inferno com "formal e material". E se tu não entendes nada do que eu digo, que dirá de mim! E eu digo porra mesmo! Porque se uma merda duma norma existe, então ela existe!

Ah dane-se Marx com sua ditadura socialista. Dane-se Durkheim com suas teorias sobre sociedade. E dane-se Rousseau com seu sotaque francês e esquizofrênia genial. E dane-se a mim que tento criticar fragmentos de um conhecimento ralo que sou obrigada a receber.

Não, crianças, não me escutem.

Eu sou burra e jovem. E jovens não sabem de nada.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

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"Você é tão errado e cheio de estragos. E me peguei olhando pra tudo isso e amando tanto, tanto, tanto." - Tati Bernardi

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Texto sem título


Ela pisou sem dó no meu meio sorriso, fazendo ele virar um pavor inteiro e verdadeiro. Eu canso dos meus meio sorrisos tanto, tanto, que prefiro que a vida seja assim mesmo. E aí me pergunto se chorei de tristeza profunda ou alegria libertadora, o que acaba dando no mesmo porque minha profundidade me liberta. A barata preta, enorme e voadora posou no canto da minha boca. E eu pude chorar todos os meus medos no seu sofá e eu pude ficar curvada do jeito que a minha sombra, que só eu vejo, é.


E eu pude borrar todos os meus disfarces e ficar feia sem culpa, porque a dor consegue ser sempre maior do que qualquer culpa, por isso o meu vício em sofrer. Eu chorei a nossa imperfeição, eu chorei a saudade enganada da nossa perfeição, eu chorei a nossa necessidade de não se largar, eu chorei a nossa necessidade de se largar, a nossa necessidade de fugir do mundo em nós e a nossa necessidade de fugir de nós encontrando amigos. Eu chorei o nosso ego que sempre tem respostas para tudo e não pode perder, chorei o nosso silêncio cansado de perguntas e desprovido de interesses, a pobreza do mundo que nos impossibilita de sermos felizes sem culpa, a falta de simplicidade que eu tenho para ser feliz e eu chorei o espaço da nossa alma que ainda falta evoluir. Eu chorei o nosso medo de não sermos o que sonhamos. Eu chorei o medo que eu tenho de não ser quem você quer e o medo que eu tenho de ser exatamente o que você quer. Eu chorei porque precisava de colo, porque precisava te mostrar a minha fragilidade escondida no meu mau-humor. Eu chorei de birra do meu lado homem. Eu chorei porque vez ou outra ele ainda bate na minha porta e eu o deixo entrar, e eu sei que isso é medo do tanto que você habita todos os lugares. Eu chorei porque eu te amo mas eu não sei amar. Eu chorei porque eu sempre canso de tudo e tudo sempre cansa de mim. Chorei de cansaço profundo de sempre cansar de tudo e tudo sempre cansar de mim. Chorei de apego ao cheiro do novo e principalmente de melancolia pelo cheiro do velho. E chorei porque tudo envelhece com novos cheiros e a vida nunca volta. Eu chorei de pavor da rotina, de pavor do fim, de pavor de sair da rotina e começar outros fins. Eu chorei meu medo de submissão, o meu medo de vomitar, o meu medo de me mostrar pra você tanto, tanto, e não ter mais o que mostrar. Eu chorei minha infinidade de coisas e o medo de você não querer abrir os mais de um milhão de baús que existem escondidos na caixa cerrada que eu guardo embaixo do meu peito. Eu chorei meu fim e o medo do meu infinito. E eu teria chorado cinco anos se você não me dissesse que já era hora de parar. E eu chorei depois cinco anos escondida, porque eu não sei a hora de parar e não quero que ninguém me diga. Aliás, eu quero sim. Eu quero que você me diga quando for a hora de parar, de continuar e de não pensar em nada disso. Eu quero que você me acorde com uma lista de horas e outras lista de anos e outra lista de encarnações.


Eu quero que você me dê a mão e me ensine o que é um relacionamento porque eu só sei andar de quatro, cheirando xixis nas ruas e rabos alheios. Eu quero que você me ensine a ser uma mulher para você. Ao mesmo tempo eu quero que vocë suma porque eu só quero ser uma mulher para mim. Eu me quero só para mim. Era minha a dor de ser solitariamente para mim. E você a substituiu pela dor de não querer mais ser solitariamente só para mim. Mas tudo é dor afinal, e eu não sei ser leve, eu não sei voar, mas a barata que vôou para o canto da minha boca, sabe. Eu carrego o esgoto no meu ventre negro, mas não sei voar como ela. Por isso ela ainda consegue ser melhor do que eu. E com todos os meus poderes para estragar a vida de alguém, eu ainda tenho medo da barata. Porque ela sabe ser misteriosa, ela sabe incomodar sem abrir a boca, ela sabe enojar o mundo com sua meleca branca sem ter que mostrá-la a ninguém.


Ela é muito mais misteriosa do que eu. Em comum temos as chineladas do mundo e todos os seres amedrontados que querem acabar com a nossa raça. Mas o poder dela ainda é muito maior do que o meu, porque ela não ama, ela não se sente traída pelas chineladas do mundo.
Ela não sabe o que é não entender nada desse mundo e ter medo do tempo. Ela não sabe o que é ter nas mãos o poder de construir e destruir e ter tanto medo desse poder. Ela vive no esgoto e não sabe o que é ter tanto medo dele. Ela aparece sem ser desejada e não sabe o medo que não ser desejada causa. Ela é uma barata e nunca vai saber o medo que a gente sente de se sentir uma. E eu chorei tanto que finalmente transformei meu meio canto de boca num bico inteiro. E chorei porque tenho tanto medo de tudo o que é inteiro, que prefiro viver tudo na cabeça, enquanto o corpo relaxa na minha cama, longe de tudo.


Eu deito na minha cama e imagino tudo o que pode acontecer, enquanto não toco de verdade na vida para não cansar demais e depois não ter forças para viver de verdade. Mas acabo dormindo e deixo pra depois. Mas eu chorei justamente porque descobri que viver na cabeça também é um tipo de coragem, porque eu não protejo a alma de feridas e nem de descanso. Mas aí ela, preta, imunda, nojenta, indesejada, um pedaço do esgoto, vôa em minha direção e me coloca em movimento. E eu corro pra bem longe e não penso, só corro. E isso é tão diferente para mim, estar em movimento de fora para dentro, que eu choro de emoção.


Eu não pensei, eu vivi.


Eu corri dela, eu vivi o medo. Eu vivi o nojo. E eu chorei de dor de sair da minha bolha interna. Ela me fez ter vontade de gritar para o mundo nojento para que ele deixe meu coração em paz. Meu coração que quer amar em paz e esquecer que a vida pode ser nojenta.


E eu corri de tudo o que é nojento, e eu chorei porque com tantas coisas lindas me acontecendo, eu precisei de uma barata para me lembrar de sentir a vida fora da minha bolha.


Ela perfurou minha proteção e saiu da minha rotina. Ela invadiu tudo e me lembrou que as coisas podem dar erradas sim, quando se menos espera, e não adianta nada estar com o chinelo preparado na mão para se defender da vida. A vida voa na sua cara, esbarra no seu rosto, suja sua vaidade, corrompe suas certezas, e você não pode fazer nada. A não ser lavar o rosto e começar tudo de novo.


- Autor Indefinido

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Cachorro

"[...]Qualquer coisa menos precisar tanto parecer uma mulher bem sucedida, trinta e poucos, apartamento próprio, família equilibrada, corpo em ordem, um amor para dormir embaixo das estrelas, uma vagina depilada e feliz, o cabelo das famosas, o cheiro da moda, a última notícia, o plano dos filhos para logo mais, os rendimentos milimetricamente estudados, os jantares com os casais que riem tanto mas preferem nunca tocar nessa coisa que aterroriza todo mundo, os almoços com quem pode me ajudar na roda social, os ciúmes bem escondidos, as dúvidas bem superadas, a desgraça bem disfarçada, o ódio transformado em "deixa pra lá, afinal, triste é ser só". E sorrir, e salto alto, e jogo de cintura e acordar meia hora antes pra maquiar meu cinza. Mas ele desperta preguiçoso, arrasta uma remela com a pata suja, lambe o próprio pau como os animais de estimação que odeiam a domesticação mas adoram a mordomia. E olha pra mim, sério e sábio e puro e apenas bicho. E eu escuto: seu erro é usar a única força que te mantém viva pra fazer teatrinho de gente."

- Tati Bernardi

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

The blower's daughter - Damien Rice

Então é isso. Exatamente como você disse que seria.