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sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Diálogo

Que medo urgente esse que assombra meus sonhos. Sensação grosseira como veneno que corrompe a via sanguínea. Onde estás tu, vinho dos prazeres, quando meu cálice uiva vazio? Preciso que venhas e o tomes em suas mãos para que possas então sentir-se completo. Oh, mas que tolice, que tolice! És apenas um cálice limpo, livre dos males do vinho corruptor. E quem foi o insensível que disse que não o quero? Quem foi o intrometido estúpido, que com suas deduções falhas, afirmou que o não preciso? Cala-te escritor infame! Deixe-me com a liberdade da criatura abstrata que acha-se própria de felicidade e esconda tua inteligência infame sob os lençóis dos olhos dos inimigos.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Azedume, vida

Pulsava o sangue na ferida aberta. E o aroma de azedume encontrou minhas narinas fétidas. Dentro de meus bolsos vazios, havia uma brisa desconcertante que inebriava meus dedos frios. Fechei os olhos e tentei lembrar do por que estar aqui. Por que eu estava? Não lembrava, não lembrava... E o suspirar angustiante que saiu de dentro de mim foi o suficiente para traduzir palavras que jamais falaria. E estava tão azeda, tão azeda por dentro. E aquele cheiro desconcertante que destruía meu corpo. E rebentava meus intestinos, destruía meus pulmões.

Mas não estava habilitada a fazer nada, nada... Éramos eu e mais milhares de pessoas dentro de garrafinhas de refrigerante, enfileiradas para o abate. Que abate? Viraríamos comida! Santa ingenuidade, já éramos comida!

E eu estava azeda... Quem sabe assim me colocariam fora e eu pudesse viver?

Acorrentada pelo gosto ruim da dor de se tornar apenas mais uma na linha de produção. E isso me salvaria. Sem pensar, agarrei-me o máximo possível ao meu gosto ruim, aos meus pensamentos ruins. A vida terminaria ali. E a libertação estava próxima. Mas não, não... Não podia ser tola. Pensar na liberdade me deixaria feliz, mas para ser livre eu precisava da miséria. Serei mísera então.

Sobre poemas

Não sou poeta. Já tentei, mas não sou.

Sou algo além disso, algo menos que isso, algo insignificante.

Não escrevo, apenas vomito palavras incertas como que bêbada ao volante.

Oh, mas que rima patética acabei de fazer!

Viste agora minha ignorância em alcançar tamanho prazer?

E como se já não fosse o suficiente, lembro-me então de castelos e serpentes.

E neles me encontro consolada, como uma bruxa malvada.

Por que ris, oh criança analfabeta?

E dizes tu: Porque até mesmo eu sou melhor poeta.

Vão

Foi naquele minuto entre o badalar do relógio e a buzina do carro que eu consegui te olhar. E olhei, olhei tanto que cada vez que te olhava sentia mais vontade de repetir a ação. E repeti mesmo. Todas as vezes que me foi possível, apenas pra que pudesse, daqui há algum tempo, lembrar que tu era de verdade. Com carne, ossos, rugas e sarcasmo. E tu estava aqui, e eu estava ali. Nós estávamos. Como num sonho paradoxal no qual as pessoas se encontram e desencontram de novo e de novo. E tínhamos sede. Eu de ti e tu de mim. E isso nos assustava. Me assustava. Eu te queria, eu te via, eu te tinha. E nós, ainda assim, fazíamos questão de apenas nos olharmos. E estávamos felizes assim. Não, não felizes, mas satisfeitos. Satisfação como uma cor púrpura que se expande dentro da imensidão branca do céu infinito. Nós éramos púrpura e o mundo era a imensidão branca. Mas os segundos passaram tão irremediavelmente que nos contentamos em ser apenas um rosa fraquinho, uma miséria do que um dia foi vermelho puro e provavelmente não voltaria mais a ser.

E tu me dizias: “Ainda te amo”

E eu te dizia: “Mas eu não sei”.

E estávamos bem assim.

Sentimentos confusos, nada que devesse ser revirado. E viveríamos assim. Duas mãos soltas que se procuram em vão no calar da indiferença soturna. Dois felinos independentes e solitários dançando por entre as ruas escuras da cidade. Eu, na minha imensidão do descontentamento. Tu nos passos silenciosos da indiferença.

E estaríamos bem assim.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

A Hora da Estrela

Porto Alegre, abril ou junho de 2008.

- Assim, a gente soma a data do aniversário com o ano que está por vir que daí descobre a numerologia correta e o que esperar do futuro.
Ela me olhava com dúvida e fascinação. Mas finalmente se deixou confiar em mim. Quer dizer, eu sabia que ela confiava em mim assim como eu confiava nela. Éramos amigas como irmãs, embora estivéssemos presas na inocência dos catorze anos.
- Tá, coloca aí que eu quero ver qual é meu ano.
Somei. E deu o número cinco. Era uma equação simples de se fazer, na qual deveríamos somar todos os números possíveis ate que resultasse num numero de um a nove. Bem, o dela foi cinco. E esse, na minha ingênua opinião, era o melhor de todos.
No livro que eu segurava na mão sobre numerologia e astrologia e essas palhaçadas sobre o futuro que minha mãe tinha comprado em uma banca qualquer apenas para satisfazer minha curiosidade nata, estava escrito tudo sobre magias para o amor, para o dinheiro e várias outras coisas para as quais eu me achava simplesmente responsável em saber. Eu não trabalhava, não estava muito inclinada a namorar e muito menos tinha dinheiro. Mas, ainda assim, estávamos lá: Das crianças atônitas brincando com alguns fogos de artifício.
- Teu ano é da mudança. E isso faz todo sentido pra mim.
Ela sorria. Tinha certeza e aceitação quanto à minha previsão. Quer dizer, ela estava tão bonita esse ano e tão segura e tão madura e tão envolvente. Enquanto que eu tinha que me contentar na insignificância do patinho feio. Uma espécie de atriz coadjuvante que serve apenas pra apoiar o brilho do personagem principal. Ok, eu nunca gostei de muita atenção e na maioria das vezes fazia de tudo pra ser a figurante. Mas eu realmente, realmente mesmo, não veria problemas em ter a minha própria hora da estrela. E foi aí que eu me dei conta: A minha hora chegaria quando o número cinco viesse na minha numerologia. Lógico! Como não pensei nisso antes? A mudança traria o brilho que me faltava e enquanto isso não acontecesse eu ficaria feliz com o meu papel nem tão importante assim. Eu meio que ficava feliz em ter minhas horas engraçadas e trágicas e vergonhosas e de medo de meninos que nunca me olhariam. Eu me encontrava comigo mesma sorrindo para uma existência feliz e medíocre, uma personalidade falha e palavras sufocadas. Nada de importante a se fazer, nada de importante a se dizer. Meu único objetivo durante a atuação seria carregar nos ombros o brilho das minhas amigas com suas vidas de personagem principal. E eu não invejava isso, apenas admirava. Todo mundo sempre disse que o mundo gira e a gente só precisa esperar que chegue a nossa vez. Então, bem, foi o que eu continuei fazendo: Esperar ansiosamente pela minha hora do show. Tipo aquele livro da Clarice Lispector sobre a Macabéa e sua insignificância no mundo.
- Por que tu não faz a soma do teu aniversário agora?
Olhei para minha amiga. Tão bonita... Ela estava animada e queria saber sobre mim. Ela sempre fazia questão de saber sobre mim. E eu, na minha onda de curiosidade e ansiedade, fiz. Deu um número idiota sobre recomeçar e coisas que eu não queria saber. Então me brilhou uma coisa por dentro: E se eu descobrir quando vai ser meu ano da mudança? Ah sim, sim, daí eu poderia ter um foco e saber exatamente o que fazer quando a hora chegasse.
O ano?
2012.


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Porto Alegre, outubro de 2011.

- Como se sente com 18 anos?
Eu pensei um pouco. Quer dizer, eu não me sentia exatamente com 18 anos. Pra mim, era mais como se meu corpo estivesse envelhecendo enquanto minha alma continuava presa aos 15 ou 14. Sério, eu não tinha mudado muita coisa. Mesmo cabelo longo, mesma sorte duvidosa, mesmos pés desiquilibrados.
- Bem... Não posso dizer que mudei muito...
Ela apenas sorriu.
- Eu também sinto isso.
A maioria das minhas amigas já estava na faixa dos dezoito e eu estava entrando pro clube. Dezoito anos... Liberdade? Responsabilidade? Trabalho? Meu Deus, eu tinha tantos planos... Estava tão ansiosa por esse momento que quase havia me esquecido que a mudança estava próxima. Mas foi aí que um ser furioso começou a dançar nas minhas entranhas, levando frio e expectativa por todo meu corpo. Tinha chegado, tinha chegado! Não, não, não posso esperar. Buda sempre disse que o desejo é que trás a dor, então seria bom que eu parasse com isso. Sem desejos, sem expectativas, sem dor. Simples, eficaz e direto.
Os dias foram se passando. O que tinha acontecido comigo? Eu estava naquela fase em que a gente se acha muito importante por que saiu da escola e entrou na faculdade e acha que já pode ter opinião sobre tudo que todo mundo diz, veste, come ou faz. E a gente acha que é muito importante e que vai mudar o mundo e que todo mundo continua errado enquanto tudo dentro da nossa cabeça tá muito certo. E que a gente briga com a família e com os amigos e fica com os hormônios explodindo a todo momento. Acho que isso se chama adolescência, ainda que um pouco tardia. Adolescente aos dezoito. Fazia sentido pra mim. Coadjuvantes normalmente são lerdos e desinteressantes e eu lidava bem com isso. Mas agora eu sabia que a hora estava chegando. As coisas iriam mudar. Tudo, tudo ia mudar. Eu ainda não sabia como, mas sentia. Sempre, dentro de mim. Eu não desejava isso por que não me permitia, mas eu sabia. Eu tinha certeza. Eu acreditava. E a ambição tomou conta da minha mente e a expectativa também. E as ruas se transformavam em um lindo cenário para a minha vida de atriz principal. Quer dizer, eu tinha tudo pra ser a atriz principal. Sabe, tipo aquela boa garota meio confusa e talvez bonitinha. E tudo estava indo muito bem assim, mas a mudança ainda não tinha chegado. Ok, eu sei eu ainda estava em 2011 e talvez isso só acontecesse em 2012.
Claro!
Como fui burra!
As coisas iriam ficar muito, muito melhores depois do ano novo. Claro! Tudo vai mudar em 2012 quando eu estiver de férias e tudo vai ser muito emocionante e um dia eu escreveria um livro sobre como a mudança na minha vida pacata foi incrível e sobre como tudo começou e sobre como tudo terminou e sobre como a vida é bonita e incrível e vale a pena esperar pelo melhor.
Sim, sim, só esperar até janeiro, que tudo, tudo vai mudar.

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Contracapa

Porto Alegre, 06 de Dezembro de 2011

Acordei mais cedo naquele dia. Uma noite tranquila, uma calma serena em todo meu corpo. Eu estava preparada para tudo afinal. A coisa, aquele monstro que me consumia finalmente havia dormido. E toda minha preocupação estava em como a minha prova poderia ter o poder de tirar minha bolsa na universidade. Ok, pensamento positivo, pensamento positivo. Obvio que eu iria passar. Eu precisava. Até ia chegar 30 minutos mais cedo apenas pra relembrar tudo e mostrar minha inteligência relâmpago para aquele professor. É, tudo daria certo. E na sexta feira eu estaria atirada na minha cama com uma sensação de dever cumprido. As férias estavam tão próximas que eu quase podia tocá-las.
O que eu não sabia, é que em algum lugar da cidade havia um caminhoneiro impaciente que estava completamente maluco pra fazer o que quer que fosse. Assim como eu. Duas pessoas ansiosas às sete horas da manhã, mal podendo esperar pela sexta-feira que ainda parecia tão distante.
O bom é que chegamos rápido ao meio do caminho.
O ruim é que nos cruzamos na sinaleira.
E se você quer saber, assim como a Macabéa que teve sua estreia na desgraça de um atropelamento, eu tive a minha própria hora da estrela.