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sexta-feira, 30 de março de 2012

Olheiras, ossos e escárnio

- Tati Bernardi

Como é que se vive? Eu queria cutucar as pessoas. E se você não suportar mais? Como é que faz? Como eu faço pra disfarçar a solidão profunda que sinto no meio de reuniões, no meio de papos leves, fins de sexo e começos de relacionamento? Como eu faço pra ficar perfeita o tempo todo ou virar um bicho estranho e não precisar mais de ninguém? Eu jamais serei o que eu quero e jamais serei o que eu sou sem precisar disfarçar que quase sou o que eu quero. E cada hora eu quero uma coisa. E no fundo eu não quero porra nenhuma. Talvez só encher um pouco o saco, provocar, ser expulsa do peito de todo mundo porque não agüento morar nesses lugares obscuros que são os outros e suas más intenções disfarçadas. Tudo é uma jaula, até minha fuga. Principalmente minha fuga. E eu estou cansada demais. É só olhar pra mim. Olheiras, ossos e escárnio.

Gosto das pessoas fortes e burras. Gosto porque jamais vou odiar o que não amo. Como é bom cagar pro mundo e andar de cu ereto. Basta amar alguma coisa para eu enfiar o rabo entre as pernas. Para eu arquear os ombros pra frente. Porque quero proteger tanto você dentro do meu peito que acabo andando como se eu tivesse grávida na garganta. Cada vez que eu quero falar ou comer ou gritar ou viver. Vem o medo de que você me saia pelos buracos da cara. Medo de vomitar você.

Não quero viver a porra do momento como dizem. Me sinto o tempo todo uma inocente me debatendo nas paredes de uma piada de mau gosto. Só queria achar a saída e rir por último. Como se eu tivesse tamanho ou força pra peitar assim as coisas como elas são. Ser humano é constatar nosso tamanho ridículo perto das coisas como elas são. Ser humano é a coisa mais linda e sábia a se fazer. Mas ser humano dói em mim de uma maneira tão especial e absurda e assustadora que, em meio a toda essa auto-estima de merda, ganho certo arrogância. Não tenho mais bunda, nem dinheiro, nem peitos, nem sorrisos, nem amigos, nem viagens, nem línguas, nem nada do que os outros... Mas tenho meu jeito de bloquear a vida fora e mergulhar aqui nessa coisa horrorosa. Nessa lista VIP da pior festa do ano só tem o meu nome. E lá vou eu voltar pra mim e esperar algum saudosismo escondida atrás da minha porta, com a arma na mão. A porta com todos os trinquinhos.
O olho mágico vendo o escuro eterno das pessoas que desistem porque até eu mesma sempre desisto

quarta-feira, 28 de março de 2012

Sophie

Acordou-se no meio da madrugada com o coração batendo violentamente contra suas costelas: estava caindo em um precipício quando o som do bater de pés na cozinha a salvou. Respirou fundo, calçou os chinelos e foi até o banheiro. No caminho, uma cena constrangedora, mas comum: dois pares de pés entrelaçados rolando pelo chão da cozinha. Ela não viu exatamente o que estavam fazendo, mas sabia muito bem. Eram seus pais fazendo a mesma coisa que provavelmente fizeram a doze anos, dando origem à sua existência. Eram os pais, fazendo sexo na cozinha, entre o breu da madrugada e os gemidos clamantes por mais. Mas Sophie já estava acostumada com isso, desde quando tinha cinco anos, quando viu, pela primeira vez, a sua mãe realizando movimentos estranhos sob o corpo inerte de seu pai. Foi aos cinco anos de idade, que Sophie desconfiou, pela primeira vez, que havia muito mais em um casamento do que tardes entediantes com primos e chás. Mas ela sabia que não deveria se intrometer, porque parecia íntimo demais, adulto demais pra que eles soubessem que ela sabia.

Depois desse dia, fosse por acaso do destino ou por puro azar, a frequência aumentou. Quase como se o apetite sexual de seus pais fosse inesgotável, infinito como as estrelas. Todas as semanas eles faziam sexo assim que ela dormia. Mas os ruídos da cama, os ruídos da voz, os ruídos do desrespeito, a despertava. E, um belo dia aos oito anos, ela percebeu que não só eles faziam, como também assistiam a pessoas fazendo a mesma coisa na televisão. Os mesmos gemidos repetitivos e angustiantes, as mesmas palavras esdrúxulas e raivosas. "Mete mais, mete mais, mete mais!" - dizia a inesquecível moça loura com os peitos maiores que a própria cabeça, dentro da televisão. Em cima dela, tinha um homem desesperadamente raivoso, fincando algo na mulher, que Sophie não reconhecia naquela época. Como se estivesse a machucando com um punhal ou coisa assim. E os pais faziam a mesmíssima coisa. A mesma sequencia de gritos raivosos e lamúrias angustiantes, seguidos por beijos e algumas palavras feias que ela jamais teria coragem de dizer.

Saber de tudo isso no começo a deixava assustada e confusa. Ela não tinha coragem de perguntar pra ninguém o que era, não tinha coragem de admitir pra si mesma que sabia. Parecia feio demais, já que o pai ficava tão brabo a ponto de bater repetidas vezes na bunda da mulher. Parecia adulto demais, a ponto de eles deixarem todo o ato apenas para quando Sophie dormia. Era como se, de noite, os dois se transformassem em animais e vivessem como cães selvagens, com todos os barulhos e movimentos bruscos. Tudo era tão grotesco, tão carnal que ela se sentia ofendida apenas de ouvir. Às vezes, se perguntava se sua mãe era como as cadelas no cio que, ao menstruarem, chamam a atenção dos machos. E se for assim quando ela própria menstruar? E se ela chamar a atenção de todos os homens na rua? As princesas também menstruam? As princesas também faziam aquilo? Mas toda a perplexidade e a confusão e a vergonha sumiram depois que ela aprendeu exatamente o que era isso na escola.

Então, hoje não fazia a mínima diferença o fato de que eles estavam nus no chão da cozinha, rolando um sobre o outro. Ela odiava ouvir a voz da mãe de uma maneira tão frágil, a voz do pai de uma maneira tão grosseira. Sentia nojo deles e de si mesma. Sentia nojo por ter de presenciar aquilo, nojo pela falta de respeito. Por que diabos as pessoas faziam sexo afinal? Por que diabos as pessoas não poderiam ser normais como ela e sobreviver sem toda aquela historia de pênis, vagina e bebês? Por quê? Por que na aula de sexologia da quinta série logo ela tinha que saber de tudo que acontecia, quando as suas amigas nem faziam ideia? Ela não entendia nada do mundo adulto. Quer dizer, na verdade ela entendia. Entendia muito bem, mas tentava poupar sua inocência tentando esquecer-se de tudo que tinha visto. Principalmente aquele dia em que viu o próprio pai apalpando os seios da professora de geografia depois da reunião enquanto sua mãe estava doente demais em casa para comparecer. Mas ela nunca contaria. E ela sabia que provavelmente ele também fazia aquelas coisas com a sua professora.

Ela não entendia por que diabos as pessoas em todos os lugares tinham tanta vontade de fazer isso. Em todos os filmes, em todos os assuntos, em todos os sites. Em todo o mundo, as pessoas tinham vontade de... De... Bem, de reproduzirem-se. Ela via isso em todas as revistas e no modo como as pessoas se vestiam. Via isso nas músicas, nos livros. Como se a vida só fizesse sentido em quanto girasse em torno do sexo. Como se as pessoas vivessem apenas na apelação disso. Como se todos os decotes e maquiagens e playboys e homens suados sem camiseta fossem as únicas coisas necessárias para uma vida feliz. Mas seus pais faziam, sua professora fazia. E muito provavelmente, algumas de suas amigas também faziam agora. Parecia que o mundo, assim como no seu sonho, era um grande precipício para pessoas que caíam seguidamente em um vão infinito de corpos nus, gemidos e grosseria.

Era isso que chamavam de amor? Era isso que o Bruno queria fazer com ela quando mandou um bilhetinho na terceira serie dizendo que a amava pra todo o sempre? Era isso que a prima dela fazia com aquele cara estranho de uma banda de metal? Era isso que o dia dos namorados representava? Sério? Só isso? Era isso que acontecia depois do final feliz da Cinderela, quando ela finalmente ia morar no castelo do príncipe encantado? Era isso que acontecia depois do casamento no final das novelas? Todos aqueles corações e bolhas plastificadas com chocolate apenas para representar o sexo? E por que, meu Deus, por que ela, dentre de todas as meninas de cinco anos que conhecia, tinha que ser a única a perceber tudo isso antes da hora? Não sabia. Mas o trauma lhe causou um torpor, uma indiferença aguda ao sexo. Um asco tão grande, que mal cabia em seu pequenino conhecimento sobre a vida. Agora, quando via os pais rolando em qualquer chão da casa sem o mínimo pudor, fazia questão de ir ouvir musica ou ler um livro. Agora, quando via um casal na rua se beijando, ela sabia exatamente o que eles fariam a seguir, quando chegassem em casa. Toda a estupidez de dois corpos batendo entre si. Toda a dor expressa pela boca da mulher, pela boca do homem. Todos os casais disfarçando a selvageria com palavras de amor.

Sophie não sabia muito bem o que era amor, mas queria manter distancia. Sem se submeter a certos atos duvidosos, sem ser como seus pais que rolam por aí grudados como cães no cio. Não, Sophie seria diferente. Tudo, tudo menos o tal do amor. Era tudo que ela desejava naquela noite. Jamais ser como sua mãe, jamais ser como os adultos. Ela não queria ser, nem de longe, como os adultos estranhos que ficam nus e começam a entrar um no corpo do outro, como intrusos. Ela não ia comer a maçã que a Eva comeu, ela ia ser como o Peter Pan. Criança pra sempre. Como se, com isso, pudesse esquecer de que, aos doze anos, já era mais adulta que muito marmanjo por aí. Como se, com isso, pudesse esquecer da infância traumatizada pelo ato irresponsável dos pais e tentar estender a inocência corrompida por mais algum tempo. Como se ela estivesse imune ao grito que o mundo dá por toque, por prazer, por carne. Não, definitivamente Sophie seria diferente.

segunda-feira, 26 de março de 2012

Carta de Exclusividade

Intercala o seu tédio com a minha insatisfação. Vai de avião que eu vou de moto. Então escuta os batimentos do teu coração no exame de fim de semana que o seu patrão encomendou para os funcionários mais obedientes do mês. To perdido pela noite do Leblon, pensando em ver o sol nascer no arpoador e depois pegar uma praia em qualquer parte dessa imensidão de azul e verde. Não está legal? Insiste em esperar de mim um buquê de flores igual o da televisão. Desculpe, eu sou vira lata sem reputação, quem confia em mim deve confiar primeiro em si mesmo que é pra não perder tempo em combate sem futuro. O sonho é bom. Romântico como o carnaval. Enigmático como o final da caverna do Dragão.

Não curto vídeo game e nem tenho imaginação para sequência de comandos intercalados entre o botão do meio, o R1 o R2 e toca pela ponta direita, desce do carro, espatifa um tapa na cara do policial e se morrer começa tudo de novo. Eu acho graça!

Sexo, maconha, ilusão. Musica, escolta e diversão. A poesia dos poetas mortos faz mais por nós dois do que pensas quando vai reclamar da vida com a vovó. Eu canto macumba e quero bater o tambor, deixar um despacho na esquina. Não pelo mal dos traidores. Não pelos que falam de mim sem me conhecer. Mas para agradecer por todas as forças que me levam adiante. Pela manha de esquivar e de dar o golpe certo, no queixo do querubim de franjas louras encaracoladas e Harpa na mão. Eu uso arpão. Falo de mais é verdade, talvez tenha sido mudo na outra encarnação, talvez tenha sido mudado, calado e meu anseio pela livre expressão acaba me atirando contra mim mesmo. O mundo é do cão. Deus não ta nele não. Deus ta aqui. Dentro de cada qual que se encanta com uma flor, com a lua, com o amor, com a rua, com o valor de um sorriso da criança. VAMOS FAZER CRIANÇAS SIM. Mas não vale largar depois e deixar o mundo transformar a pureza em pânico, em terror, em morte, em armas, em drogas, em ganância.

Eu quero a sorte de viver pelo bem do que acredito. Trabalhar com minhas idéias, colaborar com quem tem outras tantas que podem transformar nossas vidas, nossos rumos, nossos dias, nossas almas.

Bate tua carreirinha ai escondidinho e depois vai lá conversar com a sogra. Trincadão. Desce o copo de cerveja, pega o carro e tira onda com as vagabundas.

Eu quero é ser feliz porra! É ser quem eu sou sem precisar fingir e quando precisar fingir, fingir com tanta competência que filho da puta nenhum vai ficar sabendo do que eu faço no banheiro.

O amor não pode ser cobrado. Entendeu?

Não pode ser cobrado.

Intercala o seu tédio com o meu remédio para dormir.

Se a gente foi feliz um dia, que seja um bom motivo para sorrir.

Se a gente for feliz ainda que seja para colorir esse mundo tosco com o contraste do que esperam de nós.

Não temo a solidão. Eu temo é gostar demais de ficar só.

- Tico Santa Cruz


sexta-feira, 23 de março de 2012

Clair de Lune às avessas

O olhar solitário estava à espreita de algo que a fizesse viver de novo. Quase como se a brisa gélida da Argentina a aquecesse, quase como se estivesse sendo revigorada. Sentiu os cabelos se desgrenhando pela face, úmidos com as partículas do ar. As mãos gélidas digitavam rapidamente sobre coisas que não entendia. Tinha que ser rápida para não perder o fio da meada. Tinha que ser ágil como um leopardo, antes que a inspiração se diluísse com o frio. Respirou fundo, olhou ao redor e voltou para a bolha enevoada que a escondia do mundo. Perdeu-se em um baile vitoriano. Lindos vestidos, espartilhos e intelectuais arrogantes. Podia sentir a magia da Inglaterra pairando por sobre seus ombros, a vivacidade de Paris iluminando seus olhos secos. Desistiu de escrever, não conseguia mais. A imaginação estava turva, a visão embaçada. O choro preso na garganta pra que não saísse em soluços histéricos e febris.

Ao lado da janela de persiana azul, havia o piano jogado às traças. Há quanto tempo não tocava mesmo? Um ano? Quem sabe dois? Inspirada, correu ao seu refúgio musical. Estalou os dedos e começou a embalar uma melodia triste. Estava quase se lembrando de como se toca Bach, mas acabou saindo um simples Debussy. Clair de Lune, o clichê dos clichês. Não se lembrava da história da musica nem do homem responsável pela sua existência, mas sabia muito bem como tinha que tocar. Os dedos ágeis em uníssono embalavam sua emoção conturbada através das teclas empoeiradas. E ela começou a lembrar de tudo. De como tinha sido difícil se despedir de sua mãe. De como seu pai estava ficando cada vez mais louco e depressivo. De como a vida jovial havia se transformado em algo contraditório e mísero. Lembrou-se do que estava escrito na lápide da boa senhora que havia acolhido a si. A face pálida, o crânio nu. O câncer pulmonar que invadira seu bom coração e a levara pra longe da filha, do marido, do mundo. Estava a sete palmos do chão, como deveria ser. Com todos os sonhos, as presilhas de cabelo coloridas, os bolinhos de creme dos domingos e os jornais velhos para aquecer a fogueira. Tinha tudo com ela. Toda a infância da filha agora órfã, toda a felicidade do marido, agora infeliz. Não é cômica a forma como a morte entra sem bater e leva tudo que não poderia levar?

O barulho de um galho de pinho batendo violentamente contra a vidraça da janela a tirou do torpor e de Debussy. Estava novamente sozinha na velha mansão, com uma tempestade se aproximando e a repetitiva mania de sentir-se oca e inútil. Lembrou-se com um sobressalto, que havia esquecido do espaguete no fogo e, com um desespero exagerado, correu. Ora esperando que a casa incendiasse, ora querendo que algum criado viesse ajuda-la. Que surpresa ela não levou ao deparar-se com Martin. O garoto mexicano que agora estava cuidando da casa enquanto a mãe estava enferma. Que dificuldade para respirar perto daquele homem. Que dificuldade para lembrar-se de sua dor. Estava tão apaixonada por ele. Tão encantada. Mas que diabos ela tinha de ter visto logo no criado? Ela era Beatriz de La Contë, com milhares de hectares de terras disponibilizadas apenas a seu bel prazer. E ele era o latino ilegal que fazia o seu oxigênio ser interditado pelo coração só de vê-lo. Quase como o que acontecia com Cathy e Heatchcliff, segundo Emily Bronte. Ela não gostava de pensar nessas coisas, sentia-se estúpida, ridícula e infantil. Mas o que o amor é, se não a ferramenta mais eficaz para tornamo-nos dementes? Beatriz odiava estar no papel de donzela lúgubre e apaixonada. Odiava ser uma espécie de personagem de Jane Austen. Mas o que ela poderia fazer? O amava do fundo do coração e o odiava por não poder amá-lo. O que a mãe teria dito sobre isso? "Menina insolente". "Menina boba". Ou algo que a fizesse sentir como uma criança de cinco anos encantada com o Barney. Ela estava presa num drama épico do século XVIII, enquanto seu corpo desolado vagava pelas tragédias tecnológicas do século XXI.

O peito nu do desgraçado estava a centímetros do seu próprio peito palpitante.

- Eu assustei a senhora?

Senhora, senhora. Se ela estivesse em um conto vitoriano, ele a chamaria de senhorita. Ela teria fechado os olhos e suas bochechas estariam coradas. Ele teria se curvado e pedido desculpas. Mas ele não era um criado. Era apenas o filho da caseira. Ele não era profundo e clássico como Heatchcliff. E ele definitivamente não era um conde do sul da Inglaterra como Jane Austen teria quisto que ele fosse.

- Não, não. Tudo bem. Sua mãe está melhor?

- Um pouco. Acho que até a semana que vem ela já vai estar de volta.

Sentia-se estranha, quando o homem a devorava com os olhos negros de rapina. A desnudava, a destruía frente a ele. Um olhar tão íntimo e doentio que ela sentiu seus joelhos tremerem. Era enfim a donzela pálida com a dor lúgubre apaixonada pelo serviçal semi-nu. Era enfim uma espécie de Catherine Earshaw mais moderna, curvilínea, ruiva e independente do que a original. Mas ainda assim uma heroína tuberculosa, rodeada por brumas mágicas. Ou podia se contentar com a realidade de ser a moça sardenta, órfã de uma mãe ausente, apaixonada pelo cara grotesco com uns bíceps enormes que estava bem na sua frente.

Ela queria saber o que será que iria acontecer se ela passasse de Catherine para Capitu? Aquela dos olhos de cigana oblíqua e dissimulada. E assim foi. Ela era a Capitu. A eterna personagem de caráter duvidoso. Numa versão mais ruiva, triste e curvilínea. Ou se tivesse um pouco de Lucíola? Um pouco de Lolita? Tinha tomado sua decisão. Iria deixar de lado, apenas por hoje, todo o seu intelecto clássico, toda a sua melodia erudita e todo o seu comportamento puritano. Iria, só por hoje, tentar ser uma personagem mais calorosa. Mais apaixonada. Sorriu para o mexicano que, como se lesse seus pensamentos, sustentava uma expressão de expectativa, e disse:

- Martin, venha comigo.

- Para onde?

Ele estava com as bochechas vermelhas, as narinas levemente abertas. Beatriz sentiu um calor subir por seus pés.

- Para o meu quarto.


 

Teu segredo

"Flores envenenadas na jarra. Roxas azuis, encarnadas, atapetam o ar. Que riqueza de hospital. Nunca vi mais belas e mais perigosas. É assim então o teu segredo. Teu segredo é tão parecido contigo que nada me revela além do que já sei. E sei tão pouco como se o teu enigma fosse eu. Assim como tu és o meu".

Clarice Lispector

quinta-feira, 22 de março de 2012

Escrever é...

É ser milhares de pessoas diferentes em apenas um minuto. E se apaixonar por todo tipo de pessoas, como se tivéssemos nascido ontem. É criar o cara perfeito, a menina perfeita. É se apaixonar pelos traços tortos do personagem principal, pelo cabelos crespos da menina excluída. É fazer festa todos os dias, em qualquer lugar, sendo quem bem entende. É poder desligar os sentimentos, a consciência e a maturidade por um minuto, apenas pra cometer todos os erros do mundo sem ter feito absolutamente nada. É se sentir culpado, triste e solitário, mesmo estando rodeado de pessoas incríveis e uma vida estável e feliz. É ser mulher, menina, político, vendedor, barbeiro, assassino, anjo, vampiro, namorado, quarentona, adolescente, homem, mutante. É ser exatamente o que quiser na hora em que quiser. É ir dormir imaginando tudo sobre o que escreveu, tudo sobre o que ainda pode escrever. É acordar no outro dia e pegar a primeira caneta que vê na frente apenas pra escrever uma frase de impacto que surgiu as três da manhã e, por sorte, não esqueci.

É amar, odiar, chorar, revoltar, criticar, elogiar, saber. É ter a liberdade de brincar de Deus, criando mundos e pessoas ou coisas que não são pessoas. É matar, parir, beijar, dançar, correr, viajar, surpreender. É estar em casa, de frente para um computador enquanto alguém faz exatamente tudo o que quiser no meu lugar. É voltar nos anos cinquenta, viajar pro terceiro milênio. É ser gay, ser racista, ser comunista, ser camarada. É uma paixão, um estilo de vida, um vício, uma virtude. É uma das poucas coisas que dá um sentido nessa vida pacata.

Engraçado... As pessoas costumam ter um doutor particular, um advogado particular, um professor particular. Eu queria ter um escritor particular. Alguém que escrevesse única e exclusivamente para que eu lesse. Egoísmo? Acho que sim. Sim, sim... Sou minha própria escritora particular. Não, não escritora. Caloura, novata, leiga. Sim... Escrever é deixar de ser eu e me tornar em alguém muito melhor, muito pior, muito mais ou menos, muito muito. É confundir quem lê, é não separar as linhas entre o que eu queria ser e o que eu não queria ser e o que eu de fato sou e o que eu deveria ser. É protestar sem armas, é brigar sem punhos, é discutir sem falas. É amar sem amor, trair sem culpa, acasalar a noite toda sem perder a virgindade. É uma viagem em três dimensões para o qualquer lugar. É tudo, é tudo. É ter tudo e não ter nada. É o meu passaporte ilimitado pra Disney, pra Amsterdã, pra outra galáxia. Meu Deus, escrever é tão maravilhoso que quase nem sei. Quase nem sei!

Artes Cênicas e outras tragédias

Olhava-se no espelho com uma angústia avassaladora. O rímel havia escorrido e agora formava uma linha disforme abaixo dos olhos azuis. Não aguentava mais essas maquiagens vagabundas que era obrigada a usar. Não aguentava mais a lâmpada estragada do banheiro público que insistia em fazê-la parecer amarelada e mais velha. Com um pouco de frustração, passou a unha do indicador exatamente no risco do rímel, o que apenas agravou o borrão. Cuspiu no mesmo dedo indicador, olhando em volta para se certificar de que ninguém a estava observando e passou no rosto novamente. Dessa vez tinha saído. Pronto! Estava livre do borrão horrível que tinha surgido bem no meio da apresentação daquela peça de Shakespeare. Como era o nome mesmo? "Sonhos de uma tarde de verão" ou algo assim. Não, não, era noite. Sonhos de uma noite de verão.

Maldita hora em que passou no vestibular para Teatro. Maldita, maldita hora. Por que os pais tinham de ser tão liberais? Por que ela tinha que ser tão idiota, tão boba? Já tinham se passado 3 anos desde a formatura e nada de Hollywood, nada de beijos demorados e anti-profissionais com Ian Somerhalder, nada de capas da People e nada de cup cakes ao entardecer em algum café famoso de Nova York. Ela não era uma Sarah Jessika Parker, perdida em compras, sexo e amigas siliconadas em meio à cidade grande. Ela não era uma Maryl Streep graciosa e elegante, flutuando no tapete do Oscar. Ela era apenas a garota triste, com a maquiagem borrada interpretando uma coadjuvante num teatro pobre de São Paulo. Sem holofotes, sem graciosidade, sem programa da Oprah. Era a looser do sonho americano, a personagem gordinha de Glee. Os olhos ardiam de sono, de raiva, de medo. O teatro disponibilizava 170 lugares, e apenas 25 estavam ocupados. Uma amiga da faculdade que tinha quebrado o braço e a vó paterna eram as únicas pessoas presentes que ela conhecia. Meu Deus, que desastre! O cenário feito de papelão, o vestiário doado por um brechó interditado por ilegalidades. Era tudo o que ela tinha.

A porta do banheiro se abriu delicadamente, causando nela uma tremedeira. Os ombros caídos refletiam no espelho quebrado, e ela pôde ver discretamente que quem acabara de entrar era Danielle de Mourier, a garota de pele morena por quem ela sustentava uma paixão intensa e proibida. Deixou os punhos trincados, tentando controlar o desejo de beijá-la ali mesmo. Não podia se dar ao luxo de assumir sua sexualidade duvidosa, quando tudo o que mais precisava era ser uma atriz séria, forte e muito, muito hetero.

- Acho melhor você voltar logo pro ensaio antes que o Robson venha te procurar.

Dizia Danielle, logo se seguindo um de seus discursos fantasiosos sobre a fama estar próxima ou coisas assim.

Mas ela não prestava atenção. Estava perdida nos lábios rosados da negra com descendência francesa. Que vontade de fugir para Amsterdã com aquela mulher. Que vontade de ser homem por pelo menos um minuto e se perder nas curvas dela. Mas ela não era um homem e certamente não iria pra Amsterdã. Nada de maconha legalizada, nada de paisagens montanhosas, nada de troca de sexo. Ela tinha que se contentar em ser a garota triste com cabelos dourados apaixonada pela sua colega de teatro. Mas então algo aconteceu, tão rápido como um borrão. Há um minuto atrás ela tinha controle sobre si mesma, e agora estava jogando Danielle contra a pia, apalpando seus seios. Mas a surpresa não foi da menina negra ao se ver contra o espelho do velho banheiro. A surpresa era a que estava estampada nos ossos da menina loura. A surpresa pelo fato de que estava sendo muito bem retribuída, causando-lhe uma sensação de tempo perdido. Meu Deus, o que ela estava fazendo? Ou, pior, o que Danielle estava fazendo? Elas não podiam simplesmente fazer isso. Por que era errado ser lésbica. Era errado ter duas bocas femininas curvando-se uma na outra no meio de um banheiro. Era errado por que eram mulheres e de raças diferentes. Era errado por que Danielle não entendia muito bem o nosso idioma e era patriota demais de alguma cidadezinha estúpida da França. Era europeia demais, africana demais, proibida demais. E talvez fosse isso que encantasse: O fato de se estar fazendo algo errado.

Pensando nisso, com um enorme pesar, a menina loura interrompeu o beijo que já não era só beijo há muito tempo, para fazer o que quer que achasse certo. Tipo chegar em casa e beber nua e solitária na velha cama de ferro que tinha herdado do avô. Certo. Ela tinha que sair para a vida, encher a cara de álcool e arrumar um namorado bem másculo pra não ter que lidar com a lembrança de Danielle. Ela tinha que ter um bom senso. Um bom senso comum. Comum como todo mundo diz que tem que ser. Ela tinha que ser alguém que o mundo queria que ela fosse. Por que ser alguém que ela queria ser, era muito difícil, muito impossível. O jeito é se entregar mesmo, é fazer apenas o previsível. O jeito é abaixar a cabeça e dizer sim, sim, sim, milhões de sins, até que o arrependimento seja maior do que a submissão. Pena que a menina loura seja triste, lésbica, racista e submissa. Algo me diz que ela teria dado em alguma coisa. Tipo uma ótima atriz ou ativista feminina. Algo me diz que aquele beijo poderia ter se estendido e nós estivéssemos juntas. Mas ela não pode saber que eu secretamente a tenho em mim. Não. Ela era submissa demais para mim. Eu precisava de segurança, de alguém que enfrentasse o mundo inteiro só pra estar comigo. Ser homossexual no século XXI é tão comum que me ofende pensar que ela desistiu. Mas chega de pensar nela. Chega. Nem lembro mais do nome dela, nem de nada. Eu sou apenas a narradora nostálgica que observa de camarim o desastre amoroso da vida de duas meninas apaixonadas. Mas chega. Estou com sono demais para continuar sentindo falta. Sono demais. Chega.

terça-feira, 20 de março de 2012

Recado para o meu amigo Bundão

Se não houvesse esperança, não estaríamos lutando.

Acabei de ler isso e me dei conta de algo crucial para a minha existência: Eu menti. Menti pra todo mundo. Pra minha mãe, pros meus amigos, pra ti e até pra mim mesma. Menti, menti, menti e mentiria de novo. É, eu sei que é pecado e tal, mas foi inevitável. Na verdade, eu nem percebi na hora. Sabe quando a gente mente e acredita na própria mentira? Pois é...

Ahhh, não me vem com essa conversinha de que tu nunca mentiste. Acabaste de mentir ao dizer isso, mentiroso! É, eu tô te chamando de mentiroso. Mas , me diz, qual foi a tua pior mentira? Quando foi a ultima vez que tu mentiste tão bem pra todo mundo que se convenceu disso? Em? Me responde! É difícil né? Eu sei... Eu sei...

Sabe sobre o que eu menti? Foram sobre muitas coisas. Mas, principalmente, sobre ter desistido. Eu não desisti. De nada. Nadinha mesmo. Eu disse e redisse que era a pessoa mais fria e intolerável do mundo e era mentira. Eu me convenci de que não me importava com coisa nenhuma. E era mentira. Por que eu me importo. E eu acredito. E eu tenho uma esperança que nunca, nunca me abandona. Por que todos os dias eu me acordo às seis da manhã, com aquele gosto de folha seca na boca e um enorme peso nas costas sentindo uma vontade enorme de gritar que eu não quero fazer mais nada da minha vida e que nada vale a pena. Mas sabe por que eu me levanto? Por que essa mesma pessoa vazia, desiludida e teimosa me diz que eu não sou covarde e que eu não vou ficar na cama. Não importa o que aconteça, eu não vou ficar na cama. Nem no chão, nem no poço, nem em qualquer lugar que exija inércia e desistência. Eu não vou desistir, eu nunca desisti. Por que toda vez que eu tropeço nas ruas, toda vez que meus olhos ardem de sono, eu me lembro que tô lutando por alguma coisa. Alguma coisa que ainda é muito vaga pra mim, mas mesmo assim eu luto. Por que lutar só por irreverência já me basta. Não preciso de grandes explicações nem de objetivos escandalosos. Só de uma vontade inata de continuar até o fim. Só pela curiosidade de saber até onde vai chegar. Só pela vontade histórica de ser feliz. E eu não sei ao certo o que é ser feliz, mas eu quero muito ser. E eu acho que sou, às vezes. Principalmente pela manhã, com aquele gosto azedo de saliva parada.

Mas e tu? Tá mentindo pra ti mesmo que desistiu de tudo também? Ta mentindo pra ti mesmo que a vida é uma bosta e a gente só nasce pra se dar mal? Tá fazendo teatrinhos de alguém descolado só pra ter migalhas de atenção de pessoas que mal te conhecem? Fala sério! Pode mentir pra quem tu quiser, mas eu... Ah, eu tu não me engana. Não mesmo. Então, por favor, para de se comportar como um idiota e levanta a tua bunda flácida da cadeira pra lutar por alguma coisa. Mesmo que tu não queira se convencer disso. Mesmo que tu me odeie por esfregar isso na tua cara. Vai lá, bundão. Vai ser gauche na vida! Me deixa ser o anjo torto que ainda tenta te levantar. Vai lá, vai lá fazer tua novela de quem é feliz sem ser feliz. Mas depois não vem choramingar dizendo que eu não avisei. E quanto a mentir... Cá entre nós, não adianta nada, né?

segunda-feira, 19 de março de 2012

Como alimentar seu futuro alimento

E foi com um ar prepotente que eu tomei minha decisão: Eu iria de shorts. Simples, fácil, arejado. E dane-se os olhares aleatórios, dane-se a simpatia motivada pela compaixão coletiva, dane-se a opinião da Clarice Lispector sobre gostar do que cai errado no chão. Não queria repreensões nem admirações nem palmas. Na verdade, talvez eu quisesse palmas, mas isso é assunto para outro texto. Algo que fale sobre a minha vaidade reprimida ou coisa assim. Não, esse texto fala sobre como alimentar galinhas no abate. Sobre como enfiar tubos metálicos na garganta de milhares de aves e depois entupir todas elas com hormônios, rações e sofrimento. Sobre como a carne branca e macia do animal se enrola na nossa língua durante o almoço, a janta, o lanche. Sobre como o sangue delas se esvai panela a dentro e nosso olfato predatório é estimulado. Não, não... Esse texto fala sobre como eu vou meter tubos enormes de ferro dentro de todas as gargantas de quem ousar se surpreender. Não compreendo os olhos esbugalhados das crianças mal-educadas e nem quero pensar sobre os olhares tímidos dos adultos. Não me olhem. Simplesmente não me olhem. Não, não... Estou ficando louca, sobre o que estava falando mesmo? Oh, que estupidez a minha... Eu amo chamar a atenção! Olhem-me! Olhem-me aves. E eu vou dar a vocês toda a proteína da minha ração em forma de protesto. Um protesto nulo, patético e inútil, mas ainda assim, um protesto. Por que a minha perna de ferro vai fazer com que todos os olhos esbugalhados das crianças me irritem e todos os olhos semi-abertos dos adultos me divirta. Por que eu sou a coxa que foi enganada pelo Brás Cubas, como já contava o Machado de Assis. Por que eu sou a dona do matadouro de mentes vazias. Abram os olhos e me vejam, me vejam. Engulam toda a assimetria do meu corpo, todo o movimento infantil da criança de um ano que não sabe andar. Engulam a presença do defeituoso que tanto incomoda ao perfeito. Engulam, meus queridos. Apenas engulam. E façam disso, o alimento principal das gerações futuras.

domingo, 18 de março de 2012

A carranca

Os lábios dela estavam puxados para baixo em uma carranca triste. Era o que acontecia quando tudo parecia estar certo, mas não completamente. Era o que acontecia quando ela montava um quebra-cabeça de 500 pecas, e de repente percebia que havia perdido uma e teria de lidar com o buraco deixado por ela, bem no meio da paisagem formada. Ela ficava carrancuda, cínica e triste. Perdida em sorrisos pela metade que talvez dessem a impressão de que estava feliz. Mas estava mesmo feliz - ou algo bem perto disso - , ate ouvir sobre o assunto que tinha declarado como encerrado para todas as portas cruéis do seu pensamento. E então bastou uma menção exterior ao que antes se dava como esquecido, para que seus malditos lábios se curvassem. Milhares de agulhas finas espetando a pele recém curada, como uma acupuntura que desse errado. Milhares de partículas estranhas entrando em contato com as células recém formadas, como uma forma de ardência que parecia latejar a cada passo, a cada suspiro. E isso fazia seus lábios se curvarem. "Lembre-se de se manter alegre, lembre-se de se manter alegre. Não seja covarde, não seja covarde". Dentro do cérebro, os pensamentos e repreensões cantavam alto. Mas era inútil. Ela não era covarde. Mas, por algum motivo, estava bastante inclinada a ser. Afinal, o que importava? Ela tinha uma vida muito ocupada com todos os amigos da faculdade e da vida em geral para pensar em assuntos que nunca deveriam ser expostos novamente. Ela era feliz e sorridente demais para ficar com uma carranca triste no rosto levemente maquiado. Ela era exatamente como os caras com sorrisos perfeitos da propaganda de creme dental. Ela era feliz, bem sucedida, altamente sociável e muito, muito sorridente. Então por que a recaída? Por que a covardia? Sentia-se uma idiota, uma sentimentalista imatura e totalmente burguesa. Por que somente os burgueses se dão ao luxo de ficar tristes por qualquer assunto meramente superficial. Não que fosse superficial, mas ela gostava de acreditar que fosse. E assim foi. Ela tinha passado de uma garota totalmente sociável, sorridente e esquerdista, para uma burguesa antissocial e carrancuda. Se ao menos tivesse metade dos atrativos que uma garota triste devesse ter poderia amenizar a expressão seria, mas não tinha. E suspirou de novo, tentando ignorar as trezentas agulhas que pinicavam em todos os poros do corpo. E, imediatamente, ela odiava todo mundo. Ela odiava todas as garotas sorridentes com corpos esguios e voz esganiçada. Ela odiava o drama cotidiano de casais exagerados e meramente apaixonados. Ela odiava a Oi, odiava a Livraria Cultura e odiava todos os sapatos de salto alto do mundo. Ela odiava a economia, o sorriso pálido do Obama, o jornal velho deixado em cima da mesa do restaurante e os pré adolescentes com ejaculação precoce. Estava triste, carrancuda e irritada. E, para a sorte do mundo inteiro, ela odiava tudo que existia ou pudesse vir a existir. E odiava a si mesma por ser uma pessoa tão odiosa. Como ela conseguia ser tão falsa? Ouvia sua própria voz com escárnio, constatando uma crescente falta de evolução. Piadas sem graça, comentários sarcásticos carregados com uma mensagem oculta que ninguém entendia, assuntos batidos. De repente, ela estava presa num flashback de si mesma no futuro, rodeada por gatos, livros, rugas, celulites e opiniões amarguradas. Sempre odiando, sempre lutando contra o ódio, contra si mesma. Sempre vestindo a pele daquela personagem revolucionaria de algum livro que ouviu falar, para não ter que lidar com a sua própria historia. Sempre decorando textos, citações e teorias alheias para não ter que engolir suas próprias teorias impossíveis. Era um plano muito seguro de sobrevivência quando a vida seguia o rumo natural. Exceto em momentos como esse, em que ela era obrigada a encarar sete rostos conhecidos e lidar com toda a alegria, o amor e a amizade do mundo. Quando ela era obrigada a se despir de todos os exageros, todos os sarcasmos e todo o status como um negocio de troca. Ela se despia e eles também. Todo mundo tocando na pele exposta de todo mundo. Quase como um sexo grupal, só que mais intimo e menos promiscuo. Era em momentos como esse que ela tinha de lidar com a sua própria carne exposta, com a própria ferida aberta a micróbios, que não havia escapatória. Vestia, suavemente, suas mascaras. Apenas pra esconder o necessário. Um puxão daqui, um puxão dali. Nada que não pudesse se manter escondido. Afinal, eles eram felizes e sociáveis como em uma propaganda de cerveja, certo? E em propagandas de cerveja ninguém fica carrancudo, triste e amargurado. Então ela suspirou fundo, tomou um gole da coca cola capitalista, quente e não saudável e resolveu que sorriria. Mesmo que tivesse que ignorar toda a chuva de agulhas, todas as meninas com voz esganiçada e todos os casais exagerados. Quer dizer, tanta gente continua viva depois de perder uma peca de quebra-cabeças... Então ela poderia continuar também. Certo?

sábado, 17 de março de 2012

Trechos anonimos #2

Anseios Escondidos


 

Na outra face do espelho eu vejo algo há muito escondido

Cicatrizes que com o tempo nasceram para cobrir

Feridas que sangravam sem a menor consideração

A pessoa que sofria em quanto elas ardiam


 

Pessoas que não conhecem seu interior descobrem todos os dias

Quanto tempo perdem desperdiçando o indispensável

Pensando em coisas tolas e pior do que isso agindo como pessoas tolas

Fecham seus olhos sem perceber que o verdadeiro mundo se encontra em você


 

Sofrer é mais um luxo que o ser humano se dá

Cometendo a terrível ignorância de negar seus sentimentos

Sem prestar atenção ao que seu coração grita e até mesmo sufoca tentando impor

O que a maioria nega escutar


 

Senhoras e senhores apresento a vocês o novo mundo

Um mundo onde todos seguem a razão

E confesso que deveria ser o certo

Mas então pra que existiria a emoção?


 

O futuro é ser frio e calculista

Ignorar a intuição

Dominado será o mundo por pessoas frias

Que limitam sua paixão.

Trecho anonimo

Ontem, por alguma grande sorte do destino ou por algum milagre épico, eu finalmente consegui ligar meu velho computador. E para o desespero de alguns e alegrias de outros (minha alegria!), encontrei alguns textos que eu costumava escrever la por volta dos 14-15 anos. Então, se vocês, meus caros e pouquíssimos leitores, se depararem com trechos esquisitos, escritos de forma repetitiva e imatura, não se apavorem: É apenas um recado do meu passado, avisando que em breve alguma historia vai surgir. =)

"[...] A humana continuava a me observar. Eu podia senti-la sem nem ao menos retribuir sua ação. Eu ainda me lembrava do modo que ela havia enfrentado Josephine, sem perder a coragem, como acredito que a maioria dos alunos haviam feito. Seria sua personalidade notavelmente forte que a tornava tão desejavelmente diferente?

Não.Certamente seu delicioso aroma e sua estranha energia de nada eram afetados por sua personalidade.Porém, o que a fazia ser tão encantadora? Seu olhar ainda emanava uma estrondosa força para cada célula do meu corpo. Eu a olhei.

Ela era frágil e jovem demais para conter tamanha força e energia. Seus olhos estavam fixos em mim, como chamas vivas de um verde tão intenso quanto brilhantes esmeraldas. Suas pálidas maçãs faciais coraram e uma súbita mudança de direção a fez diminuir a intensidade da energia que emanava através da sala.

E por mais estranho que pudesse parecer, eu desejava tê-los fixos em mim novamente".

O amor chega em uma hora

"[...]Escrevo isso e choro. Porque quero tanto e não quero tanto. Porque se acabar morro. Porque se não acabar morro. Porque sempre levo um susto quando te vejo e me pergunto como é que fiquei todos esses anos sem te ver. Porque você me entedia e dai eu desvio o rosto um segundo e já não aguento de saudade. E descubro que não é tédio mas sim cansaço porque amar é uma maratona no sol e sem água. E ainda assim, é a única sombra e água fresca que existe. Mas e se no primeiro passo eu me quebrar inteira? E se eu forçar e acabar pra sempre sem conseguir andar de novo? Eu tenho medo que você seja um caminhão de luz que me esmague e me cegue na frente de todo mundo. Eu tenho medo de ser um saquinho frágil de bolinhas de gude e de você me abrir. E minhas bolhinhas correrem cada uma para um canto do mundo. E entrarem pelas valetas do universo. E eu nunca mais conseguir me juntar do jeito que sou agora. Eu tenho medo de você abrir o espartilho superficial que aperto todos os dias para me manter ereta, firme e irônica. Minha angústia particular que me faz parecer segura. Eu tenho medo de você melhorar minha vida de um jeito que eu nunca mais possa me ajeitar, confortável, em minhas reclamações. Eu tenho medo da minha cabeça rolar, dos meus braços se desprenderem, do meu estômago sair pelos olhos. Eu tenho medo de deixar de ser filha, de deixar de ser amiga, de deixar de ser menina, de deixar de ser estranha, de deixar de ser sozinha, de deixar de ser triste, de deixar de ser cínica. Eu tenho muito medo de deixar de ser.

Agora é menos de uma hora. Você vai chegar e automaticamente minha agenda de milhares de regras e horários e controles vai desaparecer. E eu vou ficar apavorada porque só o que eu tenho é o contorno mentiroso que eu dou para os meus dias. E você, porque me abraça e me dá outro desenho, é o vilão da minha vida programada. Você é o tufão de oxigênio que invade meu nariz mas, porque estou com tanto medo, mais parece falta de ar. Agora é menos de menos de uma hora. Preciso terminar esse texto. Mas eu tenho medo, sobretudo, de terminar esse texto. Sobre o que eu vou escrever se você for melhor do que esperar por você?"

- Tati Bernardi

sexta-feira, 16 de março de 2012

Macacos rastejantes

Eu tava aqui, perdida entre tragédias e amores quando me dei conta de uma coisa: Tudo muda. Precisei forçar minha vista e meus neurônios até aceitar isso, até aprender isso. Tudo muda. Que louco, cara! Desde quando o pirralho do meu primo tem essa voz, essa altura, esses músculos? Desde quando eu tenho essa voz, essa altura, esses músculos? Ora, desde que mudamos! Não sei exatamente como foi, mas sei que aconteceu. E isso me ajudou a perceber que, apesar de tudo, eu não sei lidar bem com essa coisa de mudar. E eu não sei lidar bem com a teoria Darwinista da readaptação e essa história de que os mais adaptados sobrevivem. Mas não importa, por que isso é verdade. É tudo uma questão de se adaptar. E enquanto a gente se da conta disso, o tempo passa e vai mudando tudo de novo e de novo e mais uma vez.

Temos que ser como camaleões, usando camuflagens em qualquer meio como uma forma que a natureza tem de esconder nosso medo de pisar em uma estrada de ovos. Temos que vestir roupas e joias e todos os quilos de maquiagem do mundo pra não ter que lidar com corpos frágeis que não reluzem como diamantes nem rasgam fácil como o algodão. E, se pararmos para ler Thomas Morus, nos daremos conta de toda essa estupidez que é a nossa vontade nata de ter um status que nunca existiu. Como se fosse necessário andarmos com placas e sinalizadores que dizem "Eu estou bem e sou mais feliz, bem sucedido e estiloso do que vocês". Por que Thomas Morus, na sua genialidade camponesa, nos deu, há uns 300 anos atrás, a mínima noção do que a sociedade quer e de como somos idiotas por nos prendermos a isso. E olha que foi há uns 300 anos atrás mesmo. Quer dizer, ou o cara era vidente ou ele tinha um QI extremamente invejável para nós, neandertais da revolução tecnológica. Honestamente, eu prefiro acreditar na segunda opção. Somos burros demais, quando comparados a qualquer filósofo da Idade Média. Nos escondemos atrás de computadores e medicamentos avançados e células-tronco e cânceres, quando uma boa parte da verdade está escondida na mente póstuma de milhares de tuberculosos e porcos atacados pela peste negra.

Mas o que resta, afinal? Camaleões carregando cargas pra sustentar nas costas todo o peso da corrupção burguesa? Milhões de mascarados cobertos de ouro e diamantes e prata e crucifixos e teorias religiosas tentando achar um lugar ao sol? Macacos usando sinalizadores mal escritos no semáforo de alguma avenida principal, no meio de toda a poluição e arrogância urbana tentando parecer mais humanos e dignos de respeito como todos os outros? Ou será que somos apenas seres rastejantes que se reabastecem de uma grama verde e suja que só dá sonhos a quem explora os mais famintos? Somos tudo isso e muito mais, meus camaradas. Somos Russos perdidos pela União Soviética, que não sabem o mínimo de história política, mas podem dar qualquer mísero e inútil palpite sobre isso. Somos Che Guevaras gritantes por uma revolução de... de... de que mesmo? Somos camaleões mascarados de macacos que rastejam pela união soviética gritando frases do Che Guevara sem ter a mínima noção do que isso significa.

Ou podemos ser apenas humanos. O que, no fim, dá na mesma.

sexta-feira, 9 de março de 2012

Aquele

Meu Deus que menino lindo. Que menino lindo. Que. menino. lindo. Era só nisso que eu pensava quando o via passando por mim com uma turma enorme de garotos descolados e meninas peitudas que tinham os cortes de cabelo mais invejados da escola. Era ele. O meu principe encantado, o meu Robin Wood, o meu amor imortal e indissolúvel que jamais iria ter fim por toda a eternidade. Era ele que estava com um capuz tapando metade do rosto perfeito, metade dos olhos perfeitos, metade do nariz e dos cravos perfeitos que ele tinha no mesmo nariz perfeito e que tapava metade do cabelo perfeito. E o dia tava tão nublado e triste que eu nem me importei de ficar reparando naquele raio de sol que me iluminava logo adiante. Era ele, era ele. O futuro pai dos meus filhos, o homem que iria surgir com um cavalo branco na frente da escola e gritar pra todo mundo que me amava. Era ele, o meu primeiro e ultimo e incrível e lindo e maravilhoso e estupendamente deslumbrante namorado. Obvio que ele não sabia disso, mas eu fazia questão de me lembrar da nossa relação todos os dias, todas as horas, todos os minutos. Exceto em momentos esquisitos como esse, em que eu estava enfiada no orelhão tentando desesperadamente telefonar pra minha mãe enquanto meus dedos tremiam e minhas costas suavam e meus olhos estavam grudados no corpo dele, na boca dele, nos olhos dele, nele inteiro.E, claro, em todas aquelas garotas vadias que o acompanhavam. Qual era o problema desses meninos bonitos? Eu simplesmente não conseguia entender por que eles faziam questão de ficar rodeados de garotas-barbie e de desfilar com elas por ai, como se fossem apenas bons amigos e nem se importassem com a bunda perfeita delas. Não, eu nunca entendi mesmo. Mas eu nem ligava, desde que pudesse acordar no outro dia e vê-lo tão lindo e tão perfeito e tão forte e tão másculo e tão sensível desfilando com elas novamente. E, meu Deus, que menino lindo. Chegava a dar nojo de olhar. Tipo quando um doce é tão doce que a gente enjoa, sabe? Ele era lindo demais. Quase me cegava de tão lindo. E tivemos uma ótima relação, eu e ele. Meu primeiro beijo, minha primeira fuga romântica no meio da madrugada. A primeira musica que eu o inspirei a criar.Mas ele nem sabe. Nem desconfia. Foi uma historia muito bonita, sabe? Durou um ano e meio. Que foi o tempo suficiente pra que eu deixasse de ser a garota totalmente estranha e passasse a ser apenas estranha. E, na minha condição de apenas estranha, me apaixonei de novo.

Mas o que me fez lembrar de toda aquela minha historia trágica de amor, foi ter visto o mesmo pai dos meus filhos, o mesmo príncipe encantado, o mesmo guitarrista lindo e perfeito dos meus sonhos de adolescente totalmente estranha, em uma foto estampada no meu facebook. Da pra acreditar? O cara dos meus sonhos de catorze anos continua ali, postando fotos exibicionistas e falando sobre musicas e shows que ele tanto faz e tanto ama. E fica se declarando todos os dias pra uma barbie-colegial com a bunda perfeita que se tornou namorada dele. E , adivinhe só, foi a primeira pessoa a me desejar feliz aniversario no ano passado. Da pra acreditar? E se isso tudo não fosse tão engraçado e tão irônico e tão irritante, eu provavelmente não teria saco nem inspiração pra escrever sobre ele de novo, depois de tanto tempo. Mas eu tenho. Saco e inspiração. E uma vontade imensa de me exibir para a menina estranha de 14 anos. Ela teria pirado. Teria dado 5 duplo twist carpado pra trás. Ela teria chorado de tanta emoção. Mas o que a versão 4 anos mais velha e madura e menos estranha do que ela faz? Nada. Ver isso não me causa nada alem de uma constatação de que a vida é muito irônica e de que certamente ela gosta de rir da minha cara. E ele também. Não é todo dia que a gente ganha um feliz aniversario do "ex imortal e estupendo e incrível amor da nossa vida". E é muito difícil ter de ver as fotos felizes da vida feliz da minha "ex alma gêmea" e saber que ele nunca foi nada alem do que eu criei na minha própria imaginação. E é mais difícil ainda, constatar que ele não é mais o amor da minha vida e muito menos a minha alma gêmea. E que o rosto perfeito dele não passa de um rosto comum cheio de cravos e espinhas e pelos da barba mal feita. Mas de tudo isso eu posso ter boas conclusões. Quer dizer, nada é pra sempre, certo? E se o "ex futuro pai dos meus filhos" hoje não passa de um "ex amor platônico patético e imaturo", tudo pode ser esquecido. E saber disso é a única coisa que me faz acreditar que todo o amor morre um dia, mesmo que a gente ache que vai ser imortal. Acho que isso é um ciclo natural, certo? Tudo nasce, cresce e morre. Ate mesmo aquele menino supostamente perfeito que morreu em mim. Ate mesmo o amor.

quinta-feira, 8 de março de 2012

Macabéa

"Saiu da casa da cartomante aos tropeços e parou no beco escurecido pelo crepúsculo - crepúsculo que é hora de ninguém. Mas ela de olhos ofuscados como se o último final da tarde fosse mancha de sangue e ouro quase negro. Tanta riqueza de atmosfera a recebeu e o primeiro esgar da noite que, sim, sim, era funda e faustosa. Macabéa ficou um pouco aturdida sem saber se atravessaria a rua pois sua vida já estava mudada. E mudada por palavras - desde Moisés se sabe que a palavra é divina. Até para atravessar a rua ela já era outra pessoa. Uma pessoa grávida de futuro. Sentia em si uma esperança tão violenta como jamais sentira tamanho desespero. Se ela não era mais ela mesma, isso significava uma perda que valia por um ganho. Assim como havia sentença de morte, a cartomante lhe decretara sentença de vida. Tudo de repente era muito e muito e tão amplo que ela sentiu vontade de chorar. Mas não chorou: seus olhos faiscavam como o sol que morria."

- A hora da estrela, Clarice Lispector


 

terça-feira, 6 de março de 2012

Mais um texto alheio que eu não sei o titulo, mas amo mesmo assim

"Acabo de chegar em casa e ver tudo diferente. Ainda estou fechando os olhos e tentando encontrar a parte mais quente das suas costas. Ainda estou com esse riso bobo na cara, matando a saudade de ter quinze anos e uma vida linda pela frente.
Pode ser mesmo que isso passe, pode ser que amanhã eu acorde e você tenha ido embora. Ainda assim, ainda que amanhã chegue para estragar tudo, poder chegar em casa e ver tudo diferente já são milhões de quilômetros rodados. Zilhões.
Você não sabe, nem sonha, mas você acaba de zerar minha vida. Minha vida era acordar todos os dias e sentir aquele gosto de merda na boca. Minha vida era vestir a armadura e relembrar com dor pela milésima vez todos os últimos podres de todas as pessoas podres que passaram ultimamente pela minha vida. Você acaba de zerar tudo. Com a parte mais quente das suas costas, com o seu medo de beijo na orelha e com o seu jeito de se desculpar por falar demais e balançar os pés, você acaba de me salvar.

Esse texto é pra te falar uma coisa boba. É pra te pedir que não tenha medo de mim. Sabe esses textos que eu publico aqui, falando putaria? Sabe esses textos falando que eu sei disso e sei daquilo? Eu não sei de nada. Eu só queria ser salva das pedras, eu só queria aprender a pegar carona nas ondas. Eu só queria que isso que eu to sentindo agora durasse mais de uma semana. Eu só queria poder chegar em casa e ver tudo diferente. Ver tudo bonito. Ver tudo como de fato é. E você salvou minha vida. O mundo está lindo. Não tenha medo de mim. Eu só queria que essa minha vontade de perdoar o mundo durasse. Hoje eu não odiei o Bradesco, a Vivo, meus pais, o IPTU, a mulher que divide a vaga do prédio comigo, o motoqueiro que me manda ir mais para o lado, a garota que fala caipira, aquele cara que você sabe quem é. Hoje eu não odiei nada nem ninguém. Eu apenas fiquei lembrando a cada segundo que você se desesperou pra encontrar meu brinco de coração. Você quis encontrar meu coração pequenininho no escuro. E você encontrou.
E você salvou meu dia, minha semana. E salvar meu dia já são zilhões de quilômetros. Você é meu herói.
Não tenha medo desse texto. Não tenha medo da quantidade absurda de carinho que eu quero te fazer. E de eu ser assim e falar tudo na lata. E de eu não fazer charme quando simplesmente não tem como fazer. E de eu te beijar como se a gente tivesse acabado de descobrir o beijo. E de eu ter ido dormir com dor na alma o final de semana inteiro por não saber o quanto posso te tocar. Não tenha medo de eu ser assim tão agora. E desse meu agora ser do tamanho do mundo.
Eu estou tão cansada de assustar as pessoas. E de ser o máximo por tão pouco tempo. E de entregar tanta alma de bandeja pra tanta gente que não quer ou não sabe querer. Mas hoje eu não odeio nenhuma dessas pessoas. E hoje eu não me odeio. Hoje eu só fecho os olhos e lembro de você me pedindo sem graça para eu não deixar ninguém ocupar o lugar da minha canga. Tudo o que eu mais queria, por trás de todos esses meus textos tão modernos, sarcásticos e malandros, era de alguém que me pedisse para guardar o lugar. Ta guardado. O da canga e de todo o resto.
Talvez você pense que não merece esse texto. Há quanto tempo mesmo você me conhece? Algumas horas? Mas você merece sim. Hoje, depois de muito tempo, eu acordei e não me olhei no espelho. Eu não precisei confirmar se eu era bonita. Eu acordei tendo certeza.
Não tenha medo. Eu sou só uma menina boba com medo da vida. Mas hoje eu não tenho medo de nada, eu apenas fecho os olhos e lembro de você me dando aquela flor velha, fazendo piada ruim as sete da manhã, me lendo no escuro mesmo com dor de cabeça.

Eu posso sentir isso de novo. Que bom. Achei que eu ia ser esperta pra sempre, mas para a minha grande alegria estou me sentindo uma idiota. Sabe o que eu fiz hoje? As pazes com o Bob Marley, com o Bob Dylan e até com o ovomaltine do Bob´s. As pazes com os casais que se balançam abraçados enquanto não esperam nada, as pazes com as pessoas que não sabem ver o que eu vejo. E eu só vejo você me ensinando a dar estrela. Eu só vejo você enchendo minha vida de estrelas. Se você puder, não tenha medo. Eu sou só uma menina que voltou a ver estrelas. E que repete, sem medo e sem fim, a palavra estrela no mesmo parágrafo. Estrela, estrela, estrela. Zilhões de vezes."

- Tati Bernardi

segunda-feira, 5 de março de 2012

De luto por aquela que morreu antes de mim

Eu morri. Há exatamente 89 dias atrás. E, apesar disso, ainda estou viva. Mas o que é a vida além de paradoxos e mais paradoxos? Eu morri. Não, não eu. Sabe? Não eu. Mas ela. Ela, ela. Aquela que estava no meu lugar, a menina que trabalhava por mim enquanto eu não chegava. Eu, ela, nós. Ela morreu, eu nasci. No exato momento em que ela se foi, eu nasci. Foi muito triste, admito. Eu gostava dela. Talvez a amasse, mas ela se foi. E, meu Deus, como eu sinto falta dela. Sempre convivemos em paz, durante todos esses anos, ela sempre esteve ali comigo. Estávamos em equilíbrio, eu e ela. Daí eu era ela, pra que não me deixasse estragar tudo aquilo em que ela acreditava. Então ela se machucou. Muito, muito mesmo. E ela não suportou toda a dor, todo o sangue, toda a perda. Então eu fiquei no seu lugar. E aqui estamos nós. Ou melhor, eu. Por que ela só fica na minha lembrança. Era tão diferente de mim... Tão... Tão... Tão ela... E o meu eu me faz sentir falta dela, entende? Eu queria tê-la de volta. Queria muito. Tadinha, era tão feliz na comodidade medíocre da vida que levava... Tão encantada com tudo. E eu não sou assim. A mediocridade me dá repugnância e a comodidade passa bem longe de mim. E quanto a se encantar com tudo... Bem, será que eu posso trocar o "encantar" pelo "decepcionar"? Por que, cara, as coisas me decepcionam. Tudo me decepciona, tudo tá errado. E agora, quando eu precisava de alguém que dissesse "Hey, as coisas são lindas", não tenho ninguém. E eu amava a simplicidade, a esperança que ela tinha. Eram sentimentos tão inocentes, tão bonitos. Mas não estão mais aqui. Deu. Acabou. Lembra? Acabou. E não, isso não é uma tentativa de me enganar. Apenas de me fazer entender os fatos: ela morreu. Tu morreste. Ela morreu. Será que deu pra entender agora?

Não...

Tu és apenas tu. E ela se foi.Mas eu queria tanto que ela voltasse, queria tanto ressuscitá-la...Mas espere... Tem algo aqui... Algo quente e reconfortante, como um sopro morno num dia frio. Será o fantasma dela que me assombra? Sinto suspiros no meu estômago e um brilho de esperança nos meus olhos turvos. É o espectro dela que assombra meu coração vazio...

É ela, é ela que me faz insone de ansiedade...

É... todo esse tédio tá me deixando maluca.

É...

A solução

Já sei! Já sei o que vou fazer contigo. Vou dobrar tuas orelhas pra te deixar marcado pra sempre em mim. Que nem os meus livros. Vou te encher de orelhas, assim como as minhas páginas preferidas, pra que eu possa sempre voltar e te ver e te amar de novo. Por que é assim que eu faço quando gosto muito de um trecho e não quero perde-lo de vista: eu faço uma pequena dobradura na pontinha da página. E tu és uma página que eu preciso acabar de ler, mas não quero esquecer. Tu és uma das minhas partes favoritas nesse livro, e preciso ter certeza de que marquei o suficiente para que possa pular de capítulo e ver o que vai acontecer.

Deu, já dobrei. Tá ali, marcadinho. Agora posso ler a hora que eu quiser. Agora posso continuar a história com a certeza de que não vou te perder. Pelo menos não dentro do meu livro, dentro da minha história. Tu tá aqui. Minha página preferida, meu trecho inesquecível. Tu tá aqui.

sexta-feira, 2 de março de 2012

Apocalipse e essas coisas #2

A lua está se afastando da Terra e isso está provocando milhares de devastações climáticas e previsões confusas para todo o planeta. A lua, fugitiva, está se afastando da órbita da Terra e, conforme o afastamento aumenta, a rotação do planeta vai cada vez mudar um pouco. O dia e a noite estarão confusos. Será manhã em uma hora e noite na outra e tarde na outra e amanhecer na outra novamente. O tempo não será mais o tempo convencional. E vamos nos perder, e o planeta vai se perder. E as marés vãos subir tragicamente e descer descontroladamente. Mas isso não vai ser em 2012 e nenhum povo asteca falou sobre isso. Apenas astrônomos e simpatizantes de astrônomos se preocupam com isso. E, claro, quem mais souber também. São teorias, mas a lua está realmente se afastando. E talvez vá parar em outro planeta, como por exemplo Marte. E daí Marte é que estará apto a uma nova população, já que o calor e a seca vão se estabilizar. A gente depende muito da lua. E, logo não vamos mais vê-la no céu. E tudo vai ter um fim e vamos morrer, por que a temperatura vai ser extremamente fria, mas também será extremamente quente. Mas dessa vez, ninguém pode culpar o homem. Eu, na minha situação de carrasca da humanidade, odeio admitir isso, mas devo: Não seremos culpados. Claramente, o aquecimento global está nos dando uma prévia do que um dia acontecerá, mas ninguém tá puxando a lua pra Marte. É ela que vai embora. É ela que vai cansar de toda essa nossa estupidez e vai se mandar pra um planeta mais pacífico. Será? Será que faz algum sentido tudo isso? Será que a Lua realmente se importa? Filosofias e metáforas a parte, eu não a condenaria por isso. Mas, felizmente, não serei eu que estarei aqui para acenar tchau enquanto ela se manda universo a fora. Serão meus descendentes. E que sorte a deles!

quinta-feira, 1 de março de 2012

Apocalipse e essas coisas

Há três horas atrás eu estava excitada. Mas como é triste constatar a minha falta de tesão! Já passou, já passou. Tinha aquele tremor, aquela coloração avermelhada, aquela queda livre, aquele rubor infantil... Tão bom e tão ligeiro. Se foi. Esgotou-se tudo. Minha excitação foi parar no outro lado do universo, há mil anos luz de mim. E restou os cacos de algo que explode em vão. Não é engraçado? Essa história de como, num dia, somos a explosão de milhares de estrelas flutuantes e, no outro, somos cacos de vidro espalhados pelo chão? Não é muito engraçado como um asteroide passa no céu e a beleza da estrela cadente perde facilmente o encanto quando se transforma em uma destruição apocalíptica?

É engraçado, é muito engraçado. Quase morro de rir. Mas até a morte está ocupada demais pra se importar com o que quase me acontece.

Lembrete:

* Todo mundo é insignificante. E nada pode mudar isso. Temos que ser felizes na nossa insignificância ou tentar fazer algo pra mudá-la, o que seria totalmente tolo, uma vez que o fato de sermos insignificantes anula a tentativa de darmos significado à nossa insignificância. O que quer que eu diga? Que minha pele oleosa pede por um banho ou que minha voz pede por liberdade? Não importa o que eu disser, por que nada importa. E eu tenho que me manter na minha própria insignificância pra não corromper a insignificância do próximo. Somos todos irmãos insignificantes. Deus é algo significante. Mas não somos Deus. E essa é uma péssima notícia, eu sei. Mas tente se lembrar disso, garota estúpida: Tu és insignificante. Assim como o que acontece na tua vida insignificante também o é. Viva com isso.

* Passar na biblioteca amanhã

* Dar um banho no gato

* Assistir o Discovery Channel às 21:00

Boa sorte!

Quando não se sente nada

Quando não se sente nada, a felicidade se torna uma sensação muito subjetiva. Ás vezes, quando ela quer se comunicar comigo, sinto um sopro leve em cada canto dos lábios e automaticamente contraio meus músculos faciais de forma a deixar meus dentes tortos aparecendo de relance. Chamam isso de sorriso. Daí toda vez que a felicidade sopra no meu rosto, eu sorrio. De leve, timidamente, como quem não quer nada. Por que eu sou alguém que realmente não quer nada. Já quis uma vez. Mas o querer me atormentou de tal maneira, que não quero mais. Não quero o que? Não sei! Só não quero. Por que não há o que querer. A lógica da vida é tão confusa que atrapalha a minha matemática. Vou querer o que se não há o que querer? Tudo tão simples.

Quando não se sente nada, a tristeza se torna uma sensação muito subjetiva. Ás vezes, quando ela quer se comunicar comigo, sinto um sopro de leve em cada uma de minhas pupilas oculares. Sinto algumas contrações na minha garganta e um aperto sem tamanho nos meus pulmões. De repente, meus olhos ficam umedecidos, para evitar a ardência que se espalha pelo rosto. Chamam isso de chorar. Daí, toda vez que a tristeza sopra nos meus olhos, na minha garganta e no meu peito, eu choro. De leve, timidamente, como quem não tem pelo que chorar. Por que eu sou alguém que realmente não tem pelo que chorar. Já tive uma vez. Mas o ter me atormentou de tal maneira, que não tenho mais. Não tenho o que? Não sei! Só não tenho. Por que não há o que se ter. A fórmula da vida é tão confusa que atrapalha a minha fórmula física. Vou ter o que se não há o que se ter? Tudo tão simples.

Quando não se sente nada, o amor se torna uma sensação muito subjetiva. Ás vezes, quando ele quer se comunicar comigo, sinto um caminhão inteiro passando por cima do meu corpo. Ardência nos olhos, sopro nos lábios, socos no estomago, fogo nos joelhos. Dói tudo. De repente, eu fico destruída e gosto disso. Chamam isso de amar. Daí, toda vez que o amor me atropela que nem um caminhão e machuca todo o meu corpo, eu amo. Com força, sem a mínima prudência, como quem não tem o que amar. Por que sou alguém que realmente não tem muitos a quem amar. Já amei uma vez. Mas o amar me atormentou de tal maneira, que não amo mais. Amar o que? Não sei. Só não amo. Por que não há o que se amar. A poesia da vida é tão falsa que atrapalha a minha prosa solitária. Vou amar o que se não há o que amar? Tudo tão simples.

Quando não se sente nada, as coisas fazem mais sentido. E a gente percebe que metade do mundo é composta por idiotas. Não importa quantas poesias e versos tentem desmentir isso.

Limonada

Ela espreme o limão no copo e me dá a limonada. Mas sem saber, adocica a minha vida com um pouco de ácido cítrico.

- Tu quer mais açúcar?

-Não, não, tá bom assim.

- Mas eu sei que tu gosta de açúcar...

- Me deixa em paz, mãe.

Ela sai. Metade magoada, metade enojada. Medindo com o termômetro de mãe o quão perigosa é a minha situação de suicida estomacal diante de um limão. Provavelmente ela se lembra de quando eu era viciada em açúcar. Não sou mais, mãe. Não, mãe, eu não quero mais uma colher. Nem se for de chá. Nem de nada. Como tu não percebes? Então ela se preocupa. Enquanto eu engulo 500 gramas de carne de animais abatidos em matadouros que tanto critico, ela se preocupa. Não sou mais uma pseudodiabética mãe. Nem uma ativista vegetariana. Nem nada. Gosto de limões e gosto de frango. O doce da carne, o azedo da fruta. O agridoce que é o resultado da culpa com o prazer.

A vida mãe, é azeda que nem o limão que eu tô tomando. E a gente tem que engolir ele inteirinho, sem água nem açúcar nem nada. Eu já adocei demais o meu limão mãe, adocei tanto que perdeu o gosto e apodreceu. E a carne que eu odeio e me dá repugnância, ela devolve a vida, sabe mãe? O coração do animal que morreu, a carne do defunto. Não sei, tenho a impressão de que me revitaliza. Sabe mãe?

Mas ela não compreende. E nem eu... Nem eu.