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terça-feira, 27 de novembro de 2012

Classificados

Porto Alegre, 27 de novembro de 2012,

Olá, meu nome é Marciana Solitária e estou em busca de um marciano (ou terráqueo, rs) que me compreenda. Abaixo, meu texto auto-explicativo.

Precisa-se de amor:

Amor daqueles bem forte, bem quente, bem destruidor, bem arrasa coração. Daqueles que vai me virar de pernas pro ar e depois me fazer morrer de tristeza. Quero algo quente mesmo, algo que pegue fogo. Abraços que queimem, olhares que ardam, beijos que incendeiem. Quero fogos de artifício, fogueiras noturnas, queimaduras de milionésimo grau.

Preciso de abraços, presenças, beijos, discussões. Tudo isso com a pessoa certa. Com o cara lindo de olhos azuis e cabelo bagunçado que vai me sorrir daquele jeito e provocar sensações diversas bem na boca do meu estomago. Que vai ser como um chute atrás do outro no meu cérebro, nas minhas convicções. Que vai ser como ir pra lua e voltar sem um foguete ou mascara de oxigênio.

Eu quero um "Sandy" que me extrapole as expectativas, que me destrua a serenidade. Quero mãos frias que completem meu corpo quente. Quero uma tempestade extra tropical que abale as estruturas dos meus tijolos duros, que me derrube com tudo em cima dessa pilha de planos irrealizáveis. Quero mordidas doloridas, sussurros sonolentos, ombros fortes. Quero pelinhos eriçados, lábios inchados, roupas fora do lugar, sofá desarrumado, cama quebrada, paredes rachadas.

Preciso inventar desculpas esfarrapadas pra quem entendeu mal o barulho estrondoso dentro do quarto. De alguém que me limpe o canto da boca e diga que ninguém vai ver. De um olhar que me derrube as paredes a baixo. É necessário que haja paixão. Sem paixão eu descarto o amor. Quem se apaga por sopro é vela e eu não acho que eu me encaixe muito bem nesse quesito. É necessário que seja grande, potente, másculo e invencível. Um vendaval suficiente para apagar o incêndio do continente africano. Um furacão que leve toda a minha sanidade embora e sacie essa coisa estrondosa que me escapa pelos poros sedentos.

Quero mais, mais, mais, mais. Algo que não se finde com qualquer pedrinha atirada em conflitos apaixonados. Algo que não se quebre como vidro. Algo que permaneça imóvel como as rochas do monte Sinai. Quero mais, mais. Quero que cresça, que volte, que brigue, que grite, que chore, que murmure, que ame. Quero que me pegue pelos braços e diga que me odeia. Quero que se arrependa depois e me desconte de outra maneira. Quero mais. Quero um pulso forte, um bíceps largo, uma barba por fazer. Alguém que fale grosso, que chore fraco. Que seja doce e também salgado.

Não precisa ter olhos azuis não. Pensando bem, pode ser castanhos. Amo olhos castanhos. Desde que não sejam superficiais. Sem olhares de gelo ou vidro ou aço. Quero algo que se derreta, que me derreta. Não precisa ter um carro. Eu posso pensar em muitas maneiras divertidas de se usar uma bicicleta. Não precisa ser moreno. Tá, precisa sim. E um pouco alto, por favor. Não quero um cara que seja mais baixo que eu e me faça sentir como o ciclope do olho só. Ah e tem que gostar de mim, mas esse é um assunto mais complexo.

Gosto de animais, cores, livros, ventos e destruições apocalípticas de paixão.

Se você estiver interessado, telefone para 0xx(51) 9593-8598

Beijos alienígenas.


 


 


 

TPM e Você

Tensão pré-menstrual me faz lembrar você. Essa atmosfera de se livrar do sangue inútil, essa coisa de estar com as emoções viradas de ponta cabeça, essa dor no fundo do ventre, esse desejo carnal exagerado à flor da pele... Não sei, mas tudo isso me lembra muitíssimo você. Então eu sinto vontade de chorar lágrimas de prata colorida. Sinto vontade de pegar na sua mão, te puxar pra um abraço de urso, te fazer carinho, te dizer que te amo. Sinto vontade de bater na sua cara e implorar pra que você volte. Implorar pra que você implore que eu volte. Implorar para que a gente nunca volte.

Sinto dores que me escapam aos sentidos, que me questionam as certezas, que me deixam caidinha de amores. E eu me despedaço e, de repente, sinto como se fosse uma estrela cadente, brilhando sozinha no céu azulado. Você me olha de longe e não sabe. Eu te amo sem saber e não vejo. Mas que dor terrível, que idiotice. Meus hormônios estão no ponto de ebulição, eclodindo, chocando, destruindo o equilíbrio que ainda mantinha intacta a minha razão. E você não faz a mínima ideia que eu morri mil mortes por você desde ontem. Você não faz a mínima ideia de como é a sensação de se morrer mil mortes e, talvez por isso, ignore o meu velório exagerado. Você nunca soube interpretar minhas metáforas, não vai saber ler mais uma.

E você é burro. O burro mais lindo que eu já vi. E a data do seu aniversário é a senha do meu cartão de crédito, do meu facebook, do meu twitter, do meu login em um site alternativo de escritores. A cor dos seus olhos é a minha cor preferida entre todas as cores do arco-íris exatamente por eu nunca ter visto ela lá. A música que tocava na minha cabeça quando eu percebi que te amava é a mais tocada do meu Windows media player, por que eu não consigo simplesmente apagar. O número do seu celular dá as combinações exatas das minhas apostas na mega-sena e, acredite em mim, um dia elas ainda vão me transformar na milionária mais sortuda do país. Mas você é burro, e por isso não faz a mínima ideia de todas essas coisas. E eu preciso de uma boa TPM pra me lembrar de você. Não que eu não lembre nos outros dias, mas é que você tem algo em comum com ela: Me da dor de cabeça, náuseas, irritação e dores por todo o corpo.

É como se eu tivesse sido espancada pelo Anderson Silva e depois atropelada por um helicóptero tentando pousar e logo em seguida pisoteada por uma manada de búfalos. É irritante por que é algo que eu não posso evitar, foge do meu controle, da minhas mãos que imploram por algum reconhecimento de poder. Não tenho poder nenhum sobre as minhas dores, sobre o meu corpo ou sobre as minhas lembranças e só sei apanhar da vida por causa disso. Mas, olhas que divertido, eu acabo lembrando de você. Das suas mãos me fazendo carinho por que eu choramingo sem parar. Da sua boca se movimentando devagar pra que eu não me irrite. Do seu cheiro impregnado nas minhas mãos que não param de roçar nas suas costas. Eu lembro de tudo, eu sinto tudo.

Mas você é burro.

E não faz a mínima ideia.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Perdida e Grandiosa

Ando em meio a essa multidão de rostos assustados e passos rápidos e me pergunto se essas pessoas sabem pelo que vivem. Às seis da tarde de um dia urbano conturbado, cheio de horários, trânsito, barulhos, intrigas, sujeiras, gorduras, manipulações e amores, estão eles. Esses três milhões de habitantes que geram mão-de-obra e carregam o futuro do país, o salário do poderio e as dores de se ser quem se é em cima dos ombros. Olheiras, vermelhidões, gripes, pobreza, mesquinhez. Fatos que entregam a sobrecarga, o transporte não suportado. E, pelo meio, andam os alienados, os protegidos. Lá estão eles. Lá estão os cegos: são eles, somos nós.

Às vezes acho mesmo que tudo faz parte de uma realidade virtual criada pra testar a inteligência superior de seres evoluídos e lindos como eu. Sim, por que eu, segundo o meu ego, sou linda e inteligente demais quando comparada à essa gentinha de merda. Não pertenço a esse planeta, simples assim. Devo estar em algum tipo de reality show inter-planetário que testa a minha paciência, a minha resistência, as minhas habilidades em sobreviver no desconhecido e inabitável. E como é triste quando percebo que, no fundo, sou igual a todos eles. Sou detestável, suja, patética. Cheia de erros, imperfeita, sem nada de especial. Com vermelhidões, olheiras, pobreza, sujeiras, gorduras, intrigas e amores. Exatamente como todo o resto, resignada, enquanto sigo firme na minha posição privilegiada na fila do abate.

Não sei falar sobre o que não entendo e posso parecer maluca. Mas acho que sou maluca mesmo, já disse isso milhares de vezes. Não compreendo nada desse mundo, não faço ideia de como vim parar aqui. E se você vier me falar da união divina entre o espermatozoide vencedor com o útero sagrado, desista. Exatidões me são entediantes, certezas me dão sono, respostas não me suportam. Se preciso ser alimentada para me manter viva, então tenho algo pelo qual viver. Se me alimentam, minha existência estará limitada e daí é só partir para o final. Mantenham-me faminta. Não me deem cálculos ou certezas. Não me respondam. Não me preencham. A vontade de é a minha razão de viver. E, sem ela, eu morreria.

Você também quer entender, não é? Você também quer respostas. Más notícias: Estamos no mesmo barco. Cegos, sempre cegos. Fiéis, patéticos e cegos. Nem sei mais no que acredito, sabia? Não sei mesmo. Agradeço ao sol, ao ar, a Deus. Agradeço a algo que não compreendo em sua grandiosidade e me acho patética, boba mesmo. Acredito mais por costume e temor do que por fé de verdade. Não existe mais um homenzinho barbudo com seu caderninho de notas que me olha la de cima e diz como eu devo seguir em frente ou não. O conhecimento é uma maldição, uma condenação eterna. Aniquila a inocência que jamais deveria ter escapado dos meus olhos infantis, dos meus medos gigantescos, da minha sede de coisas puras. Sabe o que o conhecimento fez comigo? Tornou-me cética, chata, irritável, arrogante. Tornou-me sábia e imatura. O conhecimento acabou com a minha humildade. Acabou com o meu Deus. Acabou com o meu amor. Tudo que sobrou é essa casca dura e cheia de dores e friezas e conhecimentos inúteis.

Eu sei o que dizem por aí. Dizem que conhecimento liberta a gente dessa doença chamada ignorância. Um segredo? A ignorância é o passaporte para a liberdade. A liberdade de se ser o que se quer sem odiar a si mesmo por isso. A liberdade de se ser idiota sem perceber que se é, de fato, idiota. Simples assim. Liberdade de se ser ignorante sem nem ao menos se importar com isso. O idiota não se acha idiota por não saber que é. O infeliz não sabe que é infeliz por não conhecer a felicidade. É isso. Se você é feliz sendo ignorante, não procure conhecer. Vai acabar com seu sono, sua alegria, sua paz. Conhecimento trás dúvidas e angústias e medos terríveis. Ele alimenta nosso ego, aumenta nossa percepção egoísta. Meus problemas são maiores e mais pesados e mais tristes do que o do resto do mundo, assim como meus amores e minhas revoltas. Amo mais do que os outros jamais imaginaram ser possível amar. Odeio de uma maneira que ninguém mais poderia se quer pensar em um dia odiar. Sou única, incrível, inteligentíssima. Quero ver toda essa gentinha curvada, ajoelhada abaixo da minha grandiosidade.

Eu sou a dona do mundo e tenho todo o direito de escrever essa crítica a mim mesma, ao meu ego estúpido que se reconhece como idiota e, ainda assim, não o deixa de ser.

Dedico esse texto à minha estupidez egocêntrica e a você que me odeia.

Acredite ou não, às vezes eu também me odeio.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

O texto que não é sobre você

Só dessa vez eu queria não escrever sobre você. Sei lá, tenho milhões de assuntos que poderiam ser bem mais interessantes do que a sua revolta disfarçada em passos rápidos. Bem mais interessantes do que o meu ódio disfarçado com surpresa. Mas é assim que acontece, você cruza a rua, dentre todas as milhões de ruas que existem nessa cidade, você simplesmente cruza aquela rua.

Sou uma pessoa que ama debates. Eu posso ficar aqui falando sobre alienígenas, apocalipse, economia, comunismo, direito, livros, música, educação e até de cozinha. O que as pessoas querem ler? Eu posso escrever sobre. Querem uma explicação subatômica fodona sobre a composição dos elementos que transformam o trigo em um bolo? Claro, posso improvisar. Querem críticas de cinema? Ta bom. Tô mega desatualizada, mas posso pesquisar. Eu posso falar sobre qualquer coisa, sério mesmo. Me garanto. Sou uma garantia andante, na verdade. Mas não, não. Eu posso falar sobre todos os assuntos do mundo e, ainda assim, continuo no mais desinteressante do planeta, das galáxias, das histórias por trás das histórias não românticas existentes.

Eu quero escrever sobre os seus braços finos, o seu cabelo desarrumado, o seus passos rápidos. Eu quero escrever sobre você cruzando a rua em frente a minha e puxando o meu tapete construído em cima de milhões de livros de auto-ajuda e cartazes colados na parede do meu quarto. Você me cruza a rua, me incomoda a vista, me tira o equilíbrio e continua indiferente. E eu odeio você. Odeio, odeio, odeio. E odeio. Eu odeio o seu cabelo que implora pelas minhas mãos, os seus passos rápidos que imploram pela minha atenção, as suas mãos pequenas que imploram pelo meu corpo faminto. Eu odeio essas sensação esquisita de querer gritar o seu nome e, ao mesmo tempo, fechar os olhos pra não ter que olhar você indo embora sem mim.

Eu odeio ter oito livros enormes em cima da cabeceira e, ainda assim, preferir ficar pensando em você. E lembrando dos seus braços finos, da sua boca grossa, dos seus passos rápidos. De todas as milhares de ruas dessa cidade, você tinha que atravessar logo a que eu estava. De todas as milhares de vidas desse planeta, você tinha que rodopiar e detonar e dar risada logo da minha. De todos os milhares de caras desse mundo, eu tinha que estar escrevendo agora logo sobre você. Eu te odeio, te odeio, te odeio. E dane-se se o amor e o ódio dividem o mesmo espaço, continuo odiando. Você e seus passos rápidos, sua indiferença contida, seu cabelo desarrumado. Você e a mania de viver se atravessando nas linhas tortas da minha vida, a mania de me fazer escrever em linhas retas uma história cheia de erros periféricos. A mania de me fazer disfarçar amor com ódio, loucura com solidão, saudade com raiva.

Mas hoje, só por hoje, o texto não é sobre você. É sobre o meu ódio contido contra os seus passos rápidos, a sua indiferença apaixonada, a sua saudade catatônica. Só por hoje, saiba que eu estou falando dos meus sentimentos atravessados, de um momento inesquecível, sobre como o meu tapete seguro foi puxado pelo cara descabelado do outro lado da rua que se parecia muito com você. E, pela milésima vez, por favor, deixe de ser presunçoso. Por que esse texto, meu amor, não é sobre você.

domingo, 4 de novembro de 2012

Você me pediu um cigarro – Fabrício Carpinejar




"Você foi covarde. Seu amor é forte, seu corpo é fraco. Você foi covarde como tantas vezes fui por acreditar que a coragem viria depois. A coragem não vem depois. A coragem vem antes ou não vem. Não posso amaldiçoar sua covardia. Sua boca não é rápida como suas pernas para me agarrar. Minhas pernas não são tão rápidas quanto minha boca para lhe impedir. Você foi covarde. Pela gentileza de sempre dizer sim, repetidos sim, quando não estava ouvindo. Já desfrutei de sua covardia, ríspido recusá-la agora porque não me favorece. Porque não fui escolhido. Não aquecerei seu prato para servi-la. Não a ajudarei no parto. Não partirei. Serei aquele que deveria ter sido, enterrado sem morrer, o que desapareceu permanecendo perto.

Sou seu constrangimento mais alegre. Sua ferida, seu feriado. Com o tempo, serei sua vontade de se calar. De se retirar da sala. Não conhecerá meus hábitos de puxar o café antes de ficar pronto. De abrir as venezianas como quem procura reunir os chinelos ao vento. Você foi covarde, ninguém iria compreendê-la. Hoje todos a compreendem, menos você mesma. Você não se compreende depois disso. O que é imenso é estreito. O que é infinito fecha. Até o oceano tem becos e ruas sem saída. Até o oceano. Sua esperança não diminui a covardia. Quer um conselho? Finge que a dor que sente é a minha para entreter sua dor. Saudades ficam violentas quando mudamos de endereço. Saudades ficam insuportáveis quando mudamos de sentido.


Você confunde sacrifício com covardia. Compreendo. Eu confundo amor com loucura. Cada um tem seus motivos, sua maneira de se convencer que fez o melhor, fez o que podia. Você me avisou que não tinha escolha. Nunca teria escolha. Você foi educada com a vida, pediu licença, agradeceu os presentes. Confiou que a vida logo a entenderia. E cederia. Engoliu uma palavra para dormir. Não serei vizinho de seu sobrenome. Seus nomes esperam um único nome que ficou para trás. Você não desencarnou, não se encarnou, deixou sua carne parada nas leituras. Morrer é continuar o que não foi vivido. Vai me continuar sem saber.

Você foi covarde. Com sua ternura pálida, seu medo de tudo, sua polidez em cumprir as promessas. Você não aprendeu a mentir. Tampouco aprendeu a dizer a verdade. O dia está escuro e não soprarei a luz ao seu lado. O dia está lento e não haverá movimento nas ruas. Você não revidou nenhuma das agressões, não revidará mais essa. Você foi covarde. A mais bela covardia de minha vida. A mais comovida. A mais sincera. A mais dolorida. O que me atormenta é que sou capaz de amar sua covardia. Foi o que restou de você em mim".

No cinzeiro, vários cigarros apagados...

Os cigarros amontoam-se uns sobre os outros no pires sujo de café. A cama de casal, desarrumada, guarda debaixo de si um par de alpargatas velhas e a Playboy do mês de outubro. Perto dela, o relógio caído marca sete horas. Frente à janela, na escrivaninha, pó, rascunhos escritos à mão, papel amassado, folhas em branco. Numa parede do quarto, afixados ao mural de isopor, a conta vencida do aluguel e o aviso de corte de luz. Na sala, a bolsa de couro e a mala preta (dentro dela tênis, blusão, calcinhas, jeans, camiseta, sutiã, camisa) dividem o espaço sobre o sofá com o casaco azul e a ultima VEJA.

Nesse momento, ouve-se um barulho na porta e Madalena invade o espaço silencioso e corrompe meu resguardo, meu rancor. O cabelo, outrora longo e volumoso, cai em fios bagunçados sob aquela tez enrugada. Sinto, de súbito, vergonha do meu desleixo involuntário, do comprimento da minha barba, da conta vencida que ameaçava o imóvel outrora nosso, da ultima veja jogada no chão que, a propósito, eu não lera. O contraste de nossos espíritos era latente, maçante, grotesco. A personalidade dela deixara de ser contida, a expressão deixara de ter o reflexo da educação polida. Por algum motivo que eu me negara, resignado, a enxergar, o mesmo monstro que me dilatara a vida, enaltecera a dela. Meu descuido parecia uma ofensa quando comparado à delicadeza daquelas faces rosadas, daquele olhar cintilante, daquele sorriso que me doía.

- Que tu quer aqui? – Disse eu, sem paciência para rodeios ou vergonhas infundadas.

- Vim para dar-te uma notícia importante. – Disse ela, cuidadosa, como pisasse em cacos de vidro. Numa voz determinada e ao mesmo tempo temerosa. Que notícia poderia ser aquela, para fazê-la vir até mim? Que será que o infeliz tinha feito para que ela se desse ao tamanho trabalho de desgrudar-se dele por um momento e vir ter com o ex-marido louco e maltrapilho?

- Mas, antes – Continuou ela, naquele tom cuidadoso, dando passos leves em direção à sala – preciso pegar minhas coisas. Onde estão elas, Martin?

Olhava em volta perdida, desnorteada, em meio ao caos que seu antigo lar havia se tornado. O vestido florido movia-se em volta daqueles joelhos macios e, em poucos segundos, meu apartamento já estava infectado pelo perfume dela. Aquele forte, doce frescor que irradiava da pele da adúltera.

- Está ali, do mesmo modo que você deixou. - Respondi secamente. Madalena sorriu para mim, esforçando-se para parecer simpática. Eu a conhecia bem demais para que ela sequer tentasse me enganar com aqueles sorrisos e floreios ensaiados. Se seu interesse fosse mesmo em buscar suas roupas, ela já o teria feito. O que quer que essa mulher tinha pra me dizer, a amedrontava de tal forma que, ao ver-me aqui em carne e osso, provavelmente desistira de seus planos, sejam lá quais fossem eles.

- Ah, aqui está! Exatamente no lugar onde deixei! – E, pegando a mala com facilidade, ela sentou-se no sofá, parecendo distante. Olhava para o cômodo empoeirado, para os tocos de cigarro que estavam escondidos por entre as almofadas do sofá. Eu permanecia estático na minha linha segura em frente à porta. Não sabia o que dizer para acabar com aquele silencio infernal, mas por sorte, ela o fez.

- Que te aconteceu Martin? Que tu tens?

Dei de ombros, cruzando os braços para tentar impor minha lucidez.

- Nada. Sou um homem completamente saudável.

- Onde estão os teus remédios?

Por um momento, tínhamos voltado no tempo. Há alguns meses atrás, quando ela ainda se dava ao luxo de contracenar sua preocupação por mim. Senti vontade de esganá-la. Com que direito ela me perguntava por remédios, por saúde? Com que direito invade a casa que agora é somente minha e senta-se sobre o sofá que agora é somente meu? Que a preocupação dela fosse para os infernos, junto com os remédios que eu mais tomava. E, para falar a verdade, jamais me sentira mais lúcido e dono de mim mesmo do que naquele espaço de tempo em que estive sozinho, sem ingerir um só comprimido.

- Que te importa sobre os meus remédios, Madalena? Coloquei-os no lixo. Todos eles. Já não preciso desses enganos científicos para viver.

Ela levantou-se, parecendo mesmo muito chocada. Colocou ambas as mãos em meu rosto, como que para examinar-me a saúde. Que criatura mais infame! Que mulher mais audaciosa! Não pude mais me conter. Numa explosão de fúria, segurei-lhe os pulsos com força, tomando o cuidado de não quebra-los com o meu rancor.

- Que tu quer de mim, mulher? Que tu quer aqui?

Aqueles olhos cristalinos desabavam em lágrimas que eu não compreendia. Como se a adúltera tivesse sentimentos! Era uma atriz, uma mentirosa, uma qualquer. Por que, afinal, ela chorava?

- Não podes abandonar os teus remédios Martin. Não podes, não podes...

Falava em sussurros frenéticos, como se estivesse fora de si. Temia toda, a mentirosa. Parecia uma ovelha assustada, um animal inocente. Mas, dessa vez, a loba não me enganaria. Eu estava farto do perfume, da voz, dos pulsos pequenos que tremiam em minhas mãos. Aquele pescoço frágil estava encharcado, brilhava pálido à luz fraca do apartamento. Se eu apertasse só um pouquinho poderia dar fim àquela angustia, aqueles meses de solidão que para ela nada significaram. Não, não. Segura-te, homem. Podes acabar preso por assassinato.

- Que foi mulher? Não entendo o que se passa, não compreendo. Por que veio ver-me? Por que choras tão desesperadamente?

Ela sorria em meio aos soluços. Era uma coisa curiosa de se ver. Um sorriso doentio, uma mulher perturbada.

- Oh Martin, meu doce Martin... Quero ter certeza de que estás lúcido para ouvir as boas novas.

Soltei-a, surpreso. O humor volátil deixara-me sem reação. Uma voz ao fundo da minha consciência dizia que aquele era o momento perfeito para mata-la.

- Estou, Madalena. Estou lúcido.

Ela pegou em minhas mãos, unindo meus dedos aos dela, com um sorriso radiante naquele rosto febril e úmido. Não pude me mover, senti que aquela informação seria crucial para o nosso destino.

- Martin, eu estou grávida.

Por um breve momento, o chão desabara. Grávida. Então a desgraçada havia feito a bondade de contar-me suas alegrias para com o outro? Que ela queria? Sapatinhos de bebê? Não me contive. Sem enxergar direito, tomado pela cólera e pelo instinto, a estapeei. Meu punho batera com força naquele rosto pequeno e ela recomeçara a chorar, pedindo que eu parasse. Não lhe dei ouvidos.

- Cala-te mentirosa! Monstro! Cala-te adúltera imunda. Eu hei de dar fim à tua existência agora mesmo.

Do nariz pequeno, sangue puro escorria. Ela cambaleava pela casa, dizendo mentiras, gritando meu nome. Eu não ouvia. Estava feliz, sentia-me pleno. Agarrei-lhe pelos cabelos e a joguei contra a parede do quarto.

- Martin, pare! Pare tu não entendes. Pare!

- Cala-te maldita!

Estrangulei-a com força e fervor. Ela morria lentamente nas minhas mãos. Os pés se debatiam no ar, os punhos pequenos batiam nas minhas costelas, as unhas arranhavam em vão. Até que, por fim, ela entregara-se à calma mórbida. O corpo sem vida caiu em meus braços e eu a envolvi em um abraço carinhoso. Madalena era bela, tanto viva quanto morta e eu jamais amara outra mulher que não ela. No seio inerte havia um papel reluzente que eu, durante minha fúria, não notara. Resignado, roubei-lhe o que, percebi um pouco mais tarde, era um bilhete.

" Querido Martin, se você estas a ler isso é por que a coragem fugiu-me do espírito e deixei-te por escrito o que, aparentemente, não pude falar: A razão mais recente da minha felicidade.

Entendas que, na minha posição, não cabe-me mais do que surpresa. Sei que não mais estamos juntos e que tu agora podes estar feliz sem mim, mas um acontecimento desses sempre deixa a gente meio fora de si.

Espero um filho, Martin.

Um filho que carrega nas veias o teu sangue! Um bebe que nosso amor, num passado recente, gerara. Oh, agora podes entender a minha covardia.

Bem sabes que sou medrosa, que sou inconstante e apaixonada. Às vezes até mesmo infantil. Mas serei mãe, Martin. Mãe do teu filho. Não mais estamos juntos, sei disso, mas não posso negar a origem da criatura maravilhosa que agora cresce em meu ventre.

Não mais o aborrecerei com reflexões românticas, sei que gostas de ser direto, portanto aqui me despeço. Sabes onde me encontrar, se assim o julgar necessário.

Sempre tua, Madalena".

Entreguei-me à convulsão repulsiva que aquelas palavras haviam me causado. A loucura estava intacta em meus sentimentos, bem como a consciência de minha monstruosidade. Nos meus braços, a mãe assassinada de um filho amado que jamais nasceria. O filho do homem que acabara de assassiná-lo.


 


 


 

O gato que tinha nome de rato

Eram lá meus dez ou onze anos. As fantasias da infância riam-se de mim quando eu, assustada pela chegada inesperada da adolescência, escolhera por enfeitar a casa com balões azuis e vermelhos. O tema da minha festa de aniversário era o "Homem-Aranha", já que sempre tive uma certa queda por gibis e homens de roupa colada.

Sob a mesa enfeitada, um bolo de dar água na boca trazia sobre si velas com a idade maldita. A prova de que o tempo estava passando e eu estava, gradativamente, transformando-me numa estranha para mim mesma. O cheiro de chocolate invadia a casa. Era uma festa humilde, só pra família. Na sala, ao lado da cozinha, ouvia-se os ruídos raivosos de futebol passando na televisão. Um Galvão Bueno descontente chingava os jogadores preguiçosos. Nas minhas mãos ansiosas, um gato se despreguiçava. Acredito que toda garota que se preze já teve um melhor amigo do sexo masculino. Ao menos eu tive. E o nome dele era Mickey, o gato com nome de rato.

Escondidos no meu quarto, nós ficávamos a esperar uma chamada para o jantar. Eu gostava de fingir surpresa. Ele, gostava de me acompanhar. A pelugem cinzenta que o cobria era densa e lembrava esfregão de aço. Os olhos esverdeados eram astutos, mas, naquela noite, pareciam preocupados. Mickey costumava ser um gato muito sutil, embora fosse também muito amoroso. E, na sua sutilidade, ele despedia-se de mim em silêncio.

Naquela noite, uma família se reunira feliz a cantar em nome da menina que fazia onze (ou dez) anos. O calor de novembro transformara a casa em um ambiente agradável, graças à brisa noturna. Eu estava feliz, mas, ao dar meia-noite, soube por intuição que algo havia mudado.

Mickey, o gato com nome de rato e coração de anjo, havia sumido.

Não sei se morreu, se fugiu, se foi roubado.

Mas o mistério do seu desaparecimento entristece-me até hoje.

A menina do colar de pérolas

Joaquim observava, boquiaberto, a forma como os dedos da menina fechavam-se sobre o colar de pérolas que envolvia seu minúsculo pescoço. Não deveria ter mais que cinco anos, pensava ele. Mas, pela expressão que via em seus olhos, poderia jurar que a sua percepção estava adiantada: Fulminava-o com a intensidade de uma mulher de trinta.

Vozes ressonaram, de forma grotesca, perturbando lhe a observação. Por um momento, Joaquim pensou estar parado comtemplando a criaturinha loura que o assassinava com os olhos, mas de súbito sentiu-se confuso. De alguma maneira, fora atropelado pela motocicleta dourada que o derrubara em cheio no asfalto escaldante. O homem negro e possante em cima da moto o observava com o canto dos olhos, como quem quebra um copo e o esconde em baixo do tapete, com medo que os outros vejam o estrago causado.

As pessoas se aglomeraram com ridícula rapidez ao redor do moço atropelado. Por sorte, Joaquim era forte feito o pai e valente feito a mãe. Uma união de qualidades que o faziam ser caloroso de espírito. Tinha um humor fácil, dócil. Havia saído para fazer a entrega do bolo que havia sido encomendado na padaria onde ele, de forma tão agradecida, trabalhava, quando se deparara com a menina que parecia anjo e o tirara do seu mundo. Era uma exceção às regras da sociedade, aquele rapaz português. Diziam as más línguas, que ele tinha delírios. Mas na verdade, não o compreendiam.

Afastou-se, finalmente, da confusão que o atropelamento havia causado. Ela ainda o observava, a menina. Ela tinha uma risada demoníaca e Joaquim, fosse por superstição tola e imatura, fosse por consequência da adrenalina recém sentida, soube o que ela era. E que Deus lhe protegesse a vida de agora em diante, por que ele estava encurralado, ameaçado, condenado. Condenado a que, ele se perguntava. Condenado ao pesadelo eterno que a menina do colar de pérolas o rogara. Se estava ficando louco ele não sabia, mas ficou feliz por ter uma crença na qual se agarrar.

O bolo, que por sorte ainda estava intacto após a queda abrupta, foi juntado por mãos delicadas de unhas cor-de-rosa. Emanuelle, a amada vizinha de Joaquim, tivera a bondade de junta-lo para o amigo, que a observava temeroso.

- Que tu tens? – Perguntara ela, preocupada.

Ele não queria parecer louco, mas precisava compartilhar seu infortúnio com alguém. Aproximou-se dela e respirou fundo, tomando coragem para contar-lhe sobre a bruxa, quando uma mãozinha gélida o tocara nos dedos. Era ela. Era a bruxa. Tomado de pavor, ele apenas observou, atônito, enquanto Emanuelle afagava os cabelos da criaturinha.

- Oh, Joaquim. Você não se lembra dela? É minha irmãzinha, Gabrielle.

E foi então que ele lembrou-se de Gabrielle. Claro, claro. O bebê louro que ele, por um terrível descuido, derrubara do berço quando ela tinha apenas um ano de idade. O bebe que voltara para assombrá-lo naquela noite de halloween.

E que Deus tivesse piedade dele.