Translate

sábado, 15 de setembro de 2012

Diário de uma Vadia Oportunista

13 de setembro de 2012

11:30 da manhã, em algum ônibus de Porto Alegre

Jovens universitários lutavam por um lugar no transporte coletivo que se aproximava. Eu, munida de minha perna de ferro, já estava preparada para a guerra. Qualquer coisa era só pôr o pé que eu não sinto por entre as pernas de quem me pisoteia e deu! Nada de dor, nada de brigas. Todo mundo me pisando sem se importar e sem que eu sinta absolutamente nada. Acontecer uma coisa dessas com a gente tem lá seus privilégios.

Mas é claro, para melhorar minha situação, eu estava sem passagem. Meu passaporte de isenção estava com uma falha. Não, não diria bem uma falha, mas uma intromissão da EPTC cancelara meus créditos, e lá estava eu. A garota da perna de ferro, escondida por baixo de panos e panos de roupas discretas, para poder evitar as curiosidades alheias. Depois de toda aquela vasta onda irreconhecível do inverno, eu estava desacostumada a andar por aí com as belas pernas à mostra, impondo respeito onde quer que passe. Depois que se vive uma vinda inteira aprendendo a estar escondida e longe dos holofotes, é muito estranho finalmente ser notada. E nem é por algo que me orgulhe ou que me faça sentir especial. Quer dizer, especial até me sinto. Mas não de uma forma boa. É mais como um caso especial de aberração, ou uma prova de superação como diriam os positivistas. O fato é que, escondida ou não, eu tenho certos direitos reconhecidos mundialmente (ou nacionalmente, se preferir). Como por exemplo, entrar em filas preferenciais nos bancos – algo que tem provocado a revolta de dezenas de clientes alheios à minha condição.

Tem sido engraçado, realmente engraçado perceber o quão as pessoas podem ser irritantes quando não compreendem. Logo eu, que sempre fora a invisível, desconhecia da violência populacional contra quem se aproveita das situações sem motivo aparente. E, devido à minha discrição sobre minha, hum, como devo dizer, "deficiência", tenho sido taxada de vadia oportunista. É. Bem isso. Vadia oportunista. Aquela que se acha no direito de se aproveitar dos outros sem o mínimo motivo. E, pra ser honesta, ainda não sei qual rótulo é pior. Ser reconhecida como "A menina do caminhão" pode até ser legal quando a pessoa esbugalha os olhos e acha que eu sou um fantasma ou uma espécie de super-heroína dos quadrinhos geneticamente modificada que suporta pesos enormes e sai ilesa e tal. Mas ser taxada de vadia oportunista? Bem, isso vai um pouco além das minhas expectativas.

O fato é que, com essa minha pseudofama de aproveitadora, acabei por ser agredida verbal e moralmente no tal do ônibus. E por nada mais, nada menos do que a própria cobradora. O que fiz? Chorei. É, eu sei. Fui covarde e mulherzinha. Mas acho que eu tenho o direito de ter sentimentos, né? Tente entender: Estava eu lá, sentadinha no bonito banco amarelo que fica atrás do motorista, fazendo de tudo para passar desapercebida, quando a adorável cidadã reconhece-me e julga-me com sua notável percepção de justiça. Esqueçamos que os ônibus são públicos e que a bunda é minha e eu a coloco a onde quiser, e imaginemos um mundo onde os cobradores tem a índole respeitável e, podem sim, gozar dos mesmos poderes concedidos, em tempos atrás, somente a juízes competentes para exercê-los. Ora, que mal ela estava fazendo, afinal? Só por ter proposto a mim, a vadia oportunista, a possibilidade de retirar meu traseiro imundo de cima de um banco reservado especialmente para o doce senhor de pernas fortes e intactas que se mantinha em pé e completamente alheio ao meu tamanho desrespeito, não significa que eu deva me sentir ofendida ou que ela fosse, no mínimo ignorante. Pobre mulher! Estava apenas exercendo seus conhecimentos sobre bondade e justiça que a ela são impostos pelo alvorecer do reconhecimento cobralístico dotado aos cobradores brasileiros!

Ora, que monte de merda! Desculpem-me o sarcasmo, mas não pude evitar. Quem acompanhou a cena, pode testemunhar a meu favor com o que, de fato ocorreu. A mulher se impôs de forma autoritária, exigindo uma ação que a mim era inacessível ou incabível. Fui tomada pelos nervos e, num triste surto de falha na percepção dos sentidos, respondi negativamente ao seu pedido, transformando-me numa vadia oportunista debochada. E a situação só piora... Passageiros, não menos dotados da percepção da justiça e dos poderes de julgamento, também se revoltaram contra o crime gravíssimo que eu acabara de cometer. Exercendo seus deveres como cidadãos moralistas, eles se viram no direito de me expulsarem do lugar também! Ameaçaram-me, julgaram-me, ofenderam-me. E o que eu fiz? Novamente, digo que chorei. Meus nervos estavam confusos, meus pensamentos não vinham em linhas retas. Como algo desse gênero poderia estar acontecendo? Não sei. De fato, ainda não compreendo.

Ao meu lado, um bom senhor lia calmamente seu jornal. A bengala dependurada pela perna torta denotava seus conhecimentos a cerca do meu também sofrimento. Chorei e, desamparada, recorri às suas desculpas. Pelo menos alguém precisava saber que eu não era o que eles afirmavam. Nos demos bem, conversamos, ele me fez sorrir. Lá no fundo do ônibus, o motim estava formado. Ameaças violentas começavam a tomar forma, uma grande amiga minha gritava a meu favor, a cobradora se mostrava impassível, eficiente. Estava com o rosto orgulhoso a encarar a discussão que ela própria dera origem. Não prestei-me a ouvir. Tudo que podia entender eram as palavras doces do senhor ao meu lado que, coincidência ou não, acabei por descobrir que era meu vizinho.

- Meu Deus, tu é a menina do caminhão?

Dissera ele, sendo, pela primeira vez desde que eu entrara no ônibus, o único a reconhecer a minha verdadeira identidade.

- Sim... – dissera eu, incerta sobre como ele tinha conhecimento disso.

A partir daí, a conversa não teve fim. As lágrimas caíam, não mais por injustiça, mas por emoção. Ele contara-me sua historia, e eu, em troca, confiara minhas angústias a ele. No fundo, vozes haviam cessado. A guerra parecia findada. Minha alma ainda doía, mas eu já não me importava: Meu novo amigo estava me mantendo entretida, longe das minhas dores egoístas. A inquisição estava quase no fim, quando a bruxa em questão se uniu a um bom mago que a fizera ter coragem para seguir em frente. Observei, cheia de mágoa, a indiferença da cobradora que evitava a minha direção. Levantei-me, expliquei ao motorista a situação e decidi por seguir meu caminho. Não acho que tenha sido por maldade, mas sei que foi algo mau. A ignorância é sempre algo mau, no final das contas. É a doença que salva e ao mesmo tempo, limita um povo que vai atrás de mitos sem o mínimo de embasamento. Juntei as migalhas que restaram da minha dignidade, enchi o peito de ar e disse:

- Hey amiga! - Ela virou seu grande, pardo e irônico rosto para mim. Eu queria tanto ver qual era a expressão escondida por baixo daqueles óculos escuros... Raiva? Vergonha? Indiferença? - Obrigada pela consideração.

E desci.

Logo atrás de mim, o velho, alegre homem, seguia com dificuldade pelas escadas a baixo.

- O senhor precisa de ajuda? - Disse eu, ao vê-lo caminhar de forma desengonçada pela agitada Assis Brasil. Fiquei um tanto atordoada com a quantidade perigosa de pessoas que se aplumavam pela calçada, uma ameaça à manutenção da sua jornada.

- Preciso, preciso sim. – disse ele, tirando-me do torpor pós-ataque crônico de nervosismo.

- O que posso fazer? – disse eu, ansiosa por imaginar se o peso dele seria suportado pelo meu corpo trêmulo. As pernas estavam como varas bambas, meu organismo ainda estava sob o efeito da adrenalina. Os olhos ardiam, ameaçando reproduzir mais uma quantidade implacável de lágrimas. Respirei fundo, pelo que parecia ser a milésima vez em menos de trinta minutos e aproximei-me dele, já preparando meus músculos tensos para a sobrecarga de seu peso, quando ele, abruptamente, disse-me:

- Não saia correndo.

Aquilo havia me pegado de surpresa. Eu esperava que ele me pedisse para ajuda-lo a caminhar ou algo do tipo, mas não. Eu então sorri, enquanto observava seus passos cambaleantes ganharem um rumo. Atravessamos a rua, pelo que pareceu uma eternidade, enquanto eu pacientemente aguardava que ele me acompanhasse.

- Por que o senhor não consegue caminhar direito com aquela perna?

Disse, apontando para a perna direita. Eu bem sabia o quão indiscreta uma pergunta dessas poderia soar nos ouvidos de alguém que se acaba de conhecer, mas ele já sabia de tudo que havia ocorrido comigo. Então talvez, pensei eu, pudesse não ser tão ruim. E também, eu de nada entendia sobre recuperações de tetraplégicos. Aliás, eu não sabia nada sobre tetraplégicos, a não ser a aparente mentira de que os movimentos jamais voltariam.

Um alívio me percorreu quando percebi em seus olhos que minha pergunta não o havia ofendido. Na verdade, ele parecia muito íntimo de mim, como se nos conhecêssemos de longa data, ainda que houvéssemos conversado por poucos minutos como dois desconhecidos em um ônibus, unidos pelos desastres da vida.

- A tetraplegia afetou mais a minha parte direita, entende? Minha mão e perna direita ainda não voltaram totalmente, daí eu não consigo andar direito.

E ainda assim, ele estava na minha frente, de pé, caminhando. Sua velha bengala de madeira dava-lhe apoio, as pernas cambaleantes pegavam impulso com uma força de vontade que parecia transpirar de sua pele jovial. A idade e a condição não o importavam. Senti-me pequena e fraca e terrivelmente jovem. Aquele homem tinha me passado mais sabedoria em trinta minutos do que dez livros de auto ajuda em oito anos ou quinze sessões psicológicas em seis meses. Ele ia contra todos os meus padrões e probabilidades.

- Entendi. – dei de ombros, tentando não parecer tão encantada. Às vezes as pessoas se incomodam quando olhamos pra elas como se fossem importantes demais. Pelos menos, eu me incomodaria. – Desde que esteja caminhando, já é bom, certo?

Ele sorriu. Uma luz difícil de se ver por aí estava incendiando a expressão cansada do seu rosto e, de repente, eu também me senti iluminada.

- Isso, isso mesmo.

Olhei para a rua lotada do outro lado da faixa de segurança, enquanto os semáforos preparavam-se para abrir passagem aos pedestres. Com um pesar, lembrei-me que tinha um compromisso. Eu não fazia ideia de quando o veria de novo e isso quase me deprimiu: que outro estranho ouviria uma maluca chorar sem parar sobre seus infortúnios insignificantes em pleno ônibus?

- Bom, eu tenho que ir. Foi bom conhecer o senhor.

Ele me olhou sorrindo, ainda daquela forma tenra.

- Tudo bem, eu também tenho de ir - De forma cortês, ele beijou a parte de cima da minha mão – E tu ainda vai ser muito feliz, sabia?

Eu sorri, tentando não parecer patética. Mas estava contente, afinal. Aquele homem havia salvado a minha manhã. Quiçá, até mesmo o meu dia. Ele foi, cambaleando para a parada, enquanto eu seguia rumo ao outro lado da rua. Olhei para o lado, tentando vê-lo e só avistei o aceno de sua mão. Pude ouvir, e gostei disso, a voz rouca que dizia:

"A gente ainda se vê por aí".


 

A última vez

Nuvens brancas se moviam lentamente pela imensidão azul do céu. Havia um leve sopro quente espalhado pelo vento que vinha diretamente do sul. Os dedos dele estavam a cinco perigosos centímetros dos meus. Eu estava cansada de mentir pra mim mesma ou tentar parecer indiferente, mas não havia muitas possibilidades de escolha. Ele estava claramente ignorando a nossa proximidade intoxicante. Ele estava ignorando o palpitar desenfreado do meu coração frenético, ainda que eu pudesse jurar que ele também estava nervoso ou meramente incomodado com a minha presença.

- Fazia tempo que eu não sentia isso.

Sua voz parecia distante e carregada de dor. Dor disfarçada é claro. Eu não queria criar esperanças e acreditar que aquela dor se devia à saudade. Seria bom demais pra ser verdade. Embora eu não tivesse entendido sobre o que exatamente ele estivesse falando.

- Não sentia o quê?

Ele suspirou. Um suspiro pesado, magoado. Ele parecia escolher as palavras com cuidado, como em um jogo de minas: Qualquer interpretação errada poderia fazê-lo explodir.

- Isso. Essa... Leveza.

Seus olhos encontraram os meus, no exato momento em que eu conseguia entender seus sentimentos: Ele estava confuso entre gostar da minha presença e repudiá-la. Eu sabia perfeitamente como era a sensação. Também estava inundada de contradições.

- Eu entendo.

Meus dedos escorregaram pela grama, batendo de leve nos seus. Ele pareceu tremer sob o toque e se encolher, como que se dando conta do perigo que isso demonstrava. Sua expressão permanecia impassível, distante, triste. Eu não o entendia. Não havia como. Por que ele estava aqui, afinal? Se me odiava tanto, se, como ele mesmo disse, não tinha motivos para vir. Se tudo já estava resolvido e enterrado, se tudo já estava como deveria ser. Se a flecha já tinha sido lançada e não podíamos mais voltar no tempo para impedi-la de acertar em cheio a vivacidade do que antes achávamos ser amor? Não o entendia. Não podia. Era complexo demais para as minhas perspectivas femininas de realidade.

- Será que entende mesmo?

Ele me deixava confusa. Do que estávamos falando?

- Entendo. Entendo sim.

O campus esvaziava-se, estávamos em plena hora de aula tentando pôr a conversa de meses em dia. O que não era algo muito fácil, diga-se de passagem. Quando se perde o contato com alguém que antes fora muito íntimo, tudo que resta é uma fumaça insistente de desconforto. A pessoa que te conhece melhor do que todos os outros, de repente, se torna um estranho. Só mais uma das regras claras que emolduram o final de um relacionamento fracassado. Mas o que eu poderia fazer? Eu sentia sua falta. E, ainda que ele não sentisse a minha, queria tê-lo por perto.

A tarde se passou de forma alegre e estranha. Sorrimos, conversamos, criticamos. A pontinha do mundo de confiança que ele me proporcionava finalmente começava a se expandir de uma forma saudável. Mas, lá no fundo, algo estava completamente errado. Ele tinha medo de mim. Ou será que eu tinha medo dele? Não sabia, mas podia sentir o desconforto crescendo à medida que nos entendíamos. Não parecia certo me relacionar tão bem com alguém que, tempos atrás, tinha feito nascer em mim um ódio crescente pela mesma pessoa. Eu, no meu desespero por ignorar isso, agarrava-me com todas as forças em qualquer assunto que nos aproximasse, em qualquer piada que descontraísse meus músculos tensos.

A notável atração que as minhas células ainda sentiam precisavam ser aniquiladas, caso contrário, não daria certo. Eu sabia disso. Ele também sabia, embora eu estivesse certa de que não havia reciprocidade. Claro que não havia. Só eu era a maluca ali, só eu que estava maluca pra abraça-lo, só eu que sentia uma vontade irritante de chorar cada vez que percebia o quão diferente e distante ele estava de mim. Eu sempre tinha sido a maluca da história das malucas. A que sente tudo sem que ninguém possa saber de nada. A dama de ferro, pegando fogo por baixo da armadura forte de chumbo. Claro, eu já estava acostumada a ser maluca que usava a máscara da mais normal das normais. Claro.

Eu podia ter me agarrado a mais um segundo da presença dele, mas não quis. As coisas estavam indo por um rumo que eu já havia previsto há tempos atrás, e, de súbito, tudo fez sentido. O sol despediu-se no poente e a noite caiu. Minha perna dolorida protestava contra a minha vontade de permanecer caminhando com ele pelo resto da noite e, sem muita vontade, despedi-me. Aquela máscara de tristeza o encobria, superficialmente, ainda que eu tivesse a fraca impressão de conseguir tê-la quebrado com o passar das horas. E, naquele momento, eu tive a fraca impressão, a forte intuição, de que era a última vez. Era isso. Minha ultima chance. O olhei, atentamente, tentando gravar o rosto, o perfume que tantas vezes me tirara do sério, a voz que tantas vezes me acalmara, ele. Me apeguei, desesperadamente, a cada centímetro daquela pessoa que tanto representara pra mim um dia. Como num velório, quando a gente sabe que só vai ver o defunto de novo em fotos. Sem querer ser exagerada, mas foi assim. Despedi-me dele, com um aperto no coração. Uma vontade de abraça-lo, de chorar, de dizer adeus de forma bonita. Mas tudo isso só ficou na minha cabeça. A cabeça da maluca cheia de sentimentos não recíprocos. Ele calmamente disse-me tchau. Calmamente observou enquanto eu ia embora. Calmamente deu seus passos rápidos no sentido oposto ao meu. Calmamente foi embora pela ultima vez.

E eu?

Eu sorria, indiferente. Acenei um tchau nulo de sentidos. Virei-me, rapidamente, e segui meu rumo como quem não se importa e tem muitas coisas pra fazer no dia seguinte. Eu sorria, enquanto tudo dentro de mim chorava. Sem ter certeza que, aquela, seria a minha ultima chance de fingir indiferença. Sem saber que eu iria embora da vida dele pela última vez.


 


 

Outrora

Realidades se chocam em uma matriz de números caindo. Milhões de pessoas que vivem enquanto pensam estar, de fato vivendo. Minha mente analisa calmamente cada uma delas: Paradas, parecem inocentes. Em movimento, são como animais selvagens. Vivo em uma selva que se auto intitula sociedade moderna. À minha direita, gente se empanturrando de hambúrguer. A maionese escorrendo pelo canto da boca ávida. Marcas de gordura nos dedos lambuzados. Litros de refrigerante caindo e manchando as calças quase limpas.

É meio-dia, a hora mais suja do dia. O sol se impõe, orgulhoso, no centro do céu, abrindo os poros sujos de quem se esconde, assim como eu. A hora em que o proletariado foge de sua escravatura e experimenta o feio gozar alimentício. Não há classe no centro poluído de Porto Alegre. Há papéis no chão, rostos de políticos sendo pisoteados por um povo que corre ignorante e faminto. Há gritos, comerciantes que exaltam suas vozes, implorando por alguma atenção que salve seus estômagos da miséria. Há o cheiro da fritura, os carros que buzinam, a fumaça negra que invade minha atmosfera outrora pura. Há também a beleza corroída dos prédios históricos, o cheiro pútrido que impregna as paredes de um mercado público outrora imponente e luxuoso. E há, ainda, o fraco retumbar da justiça, emanando ondas surdas de um grito inútil de guerra, pelas entrelinhas de um filme realístico do cotidiano brasileiro.

Pessoas se amontoam em frente à prefeitura, falam, pulam, gritam, em vão. Não temos tempo para apoiá-las, precisamos trabalhar. Apenas os vagabundos tem tempo pra coisas inúteis, como protestar. Tudo o que queremos é chegar em casa, assistir televisão, dormir e ganhar nosso dinheiro no final do mês. A decadência é garantida por promessas que compactuam um contrato injusto de servidão. Os direitos trabalhistas já estão ultrapassados, ninguém precisa disso. Precisam apenas de alguém que garanta seu sustento por trinta dias, seu luxo por dois dias, sua fidelidade por quarenta anos. Paralelamente à corrida na selva, índios se amontoam na praça principal, impondo um décimo de sua cultura outrora valorizada. Crianças sujas, com seus olhos inocentes, pulam. A música que sai do rádio ultrapassado não é entendida por ninguém. Que língua é aquela? Serão os tupi-guaranis? Não se sabe. São apenas índios pobres sem alguma outra perspectiva de vida, se não a esperança de ganhar algum renome em forma de centavos que garantam seu almoço e o próximo próspero CD, é claro.

Um cão morre lentamente, no asfalto que queima em uma temperatura anormal de trinta e cinco graus célsius. Ninguém pode enterrá-lo de forma justa, nada de lágrimas, nada de cerimônias afetivas. É apenas um animal que, na sua irracionalidade, perdeu a vida ao atravessar as ruas agitadas da cidade grande. Mais um dentre os montes de vira-latas que têm sua existência ignorada e sua morte sem significância alguma. Cães que escondem o rabo entre as pernas, implorando por atenção ou apenas um pedaço de carne. Cães que sofrem, de dia claro e morrem ao meio dia na sua busca frenética por carinho. Os humanos, outrora sentimentalistas, finalmente evoluíram para a fase robótica do trabalhador egoísta: Seu sofrimento ocupa espaço suficiente em seus corações para que se deem ao luxo de se quer pensar no sofrimento do outro. Quem dirá no de um mero animal.

A morte, outrora assustadora, significa libertação de uma vida recheada de injustiças. É o século XXI com suas regras controversas, sua medicina exaltada, seus computadores eficientes, sua felicidade ignorada, o futuro de uma humanidade recheada de guerras e selvagerias irracionais se movendo, cada vez mais, rumo ao apocalipse requintado. As guerras estão extintas, estamos em uma época em que as ofensas sorridentes são o maior frasco de veneno. Outrora, Romeu precisara de um boticário para morrer por sua amada. Hoje, precisamos apenas de uma língua e um pouco de malícia. É efeito certo e eficaz, convenhamos, nada poético. Shakespeare que me desculpe, mas romantismos suicidas estão totalmente fora de moda.

Nas bancas de revistas, sorrisos forçados emolduram rostos criados no photoshop para agradar nosso ego mau acostumado com uma perfeição inalcançável. A moça da banca de jornais esconde sua beleza em baixo de três camadas de corretivos, pó e base. Seus dezesseis anos não são suficientes para manter uma pele oleosa livre de acne, por isso, ela esconde. Seu cabelo castanho se rendeu às luzes loiras, ruivas, azuis. A barriga, apertada por uma cinta de emagrecimento, se contrai enquanto o estomago ronca de fome. O pouco dinheiro que ganha é reservado para os shakes milagrosos que as famosas tomam para manter o corpo impecável. A jovem é anêmica, mas não se importa: Vê-se como linda. Ao seu lado, o namorado musculoso esconde na mochila pesada doses fortes de anabolizantes. Ele gosta de parecer com os caras que saem nas revistas másculas em cima de motos vorazes. O casal perfeito, reflexo de uma cultura doente.

Volto para o presente, dou play. Tudo recomeça, os gritos, a sujeira, a fumaça. Corro para pegar o ônibus no final da linha, que se prepara para partir. Antes de ir, escuto uma última balada. Na praça da matriz, pobreza e luxo emolduram um local outrora limpo. Um maltrapilho de cabelo comprido embala sua música no violão velho. Da sua garganta ébria, palavras bonitas ressonam e ativam meus ânimos quase mortos: "Quem me dera, ao menos uma vez, acreditar que o mundo é perfeito e que todas as pessoas são felizes".

O homem não sabe, mas embalando as palavras de Renato Russo, passou a mim certa parcela esperança que, outrora, matara o mesmo músico.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Capítulo XXV, Livro I

Aquela bolsa recheada de um O positivo nunca havia me parecido tão perigosamente deliciosa. Meus impulsos gritavam, em algum lugar que eu não conhecia, mandando que eu pulasse sobre ela e a engolisse inteira, mas me contive. Os olhos de Robert ainda estavam fixos em mim e eu precisava mais do que tudo passar nessa disciplina para finalmente poder ganhar o meu próprio Arco 3d00. Mas olhar para aquele líquido viscoso e permanecer parada era mais difícil do que eu imaginava. Eu podia sentir a minha faringe queimando e as minhas narinas pulsando com o simples cheiro de ferro. Era sangue humano, dos bons. Quente, fresco. Eu me perguntei da onde diabos aquilo tinha surgido.

- Da onde você tirou isso?

- Da minha dispensa.

Aquele tom sarcástico tinha sido um banho de água gelada para os meus nervos tensos. Ele soltou uma gargalhada descontraída, tentando tirar minha concentração do perigo. E eu admito que fiquei muito, muito grata por isso.

- Não tem graça sabe – disse eu, colocando as mãos no quadris e olhando para ele. Deus, eu preferiria passar a vida lutando contra a sede do que ter de encará-lo por dez minutos. Mas nesse momento, eu dificilmente poderia escolher qual era o pior perigo: A minha sede incontrolável de sangue ou a minha sede incontrolável de Robert. Optei pela primeira opção, já que eu estava mais acostumada a me controlar perto dele do que de um O positivo.

- Tranque a respiração, ma petit.

Dizendo isso, ele se moveu rapidamente até a cortina, rasgando uma faixa de uns trinta centímetros e, logo em seguida, veio até mim com uma expressão séria.

- Vire-se.

- O que? A gente vai brincar de cabra-cega?

Ele sorriu.

- Cale a boca e vire-se.

E eu o obedeci. Não por que era submissa, mas por que algo na voz dele me passou confiança e autoridade. E, afinal de contas, ele era meu professor. Ainda que fosse totalmente anti-ético da minha parte ficar ruborizada e incontrolável perto dele. Ainda que cada centímetro do meu corpo ardesse pela aproximação repentina. Ainda que devêssemos estar nos beijando selvagemente pelas ruas escuras da cidade, ele merecia meu respeito. Primeiro por que não me retribuía em nada nesse quesito e, segundo, por que eu deveria estar me concentrando em não respirar, ao invés de tentar sentir com todas as forças o estranho perfume que ele emanava. Aquela fusão maravilhosa entre metal e frutas doces.

- Sei que você não está acostumada com isso e sei muito bem como deve ser a sensação.

Disse ele, enquanto se posicionava pro trás do meu pescoço e, com os dedos fortes, amarrava o lenço no meu rosto, trancando a passagem de ar pelo meu nariz.

- Por isso, lembrei de uma velha técnica que eles costumavam ensinar nas escolas de treinamento de caçadores.

- Por que ensinavam a trancar a respiração se só existem caçadores humanos?

As sobrancelhas dele se uniram, indicando que ele estava se concentrando em algum lugar bem distante. Tipo alguns séculos atrás ou algo assim.

- Eles faziam isso durante a segunda guerra mundial, como uma forma de se proteger do cheiro de morte e dos gases das câmaras. Quando caçadores iam até as concentrações de Hitler, era costume da época estarem bem equipados, inclusive com máscaras de oxigênio para proteger suas vidas. E quando não conseguiam a máscara necessária, eles usavam o que tinham, como faixas de suas próprias roupas. Mais tarde criaram máscaras de couro, pra que não nos infectássemos com venenos de outro tipo. Nunca perdemos tantos homens quanto naquela época. Mas isso você vai estudar em breve, antes precisamos nos concentrar na sede da outra Isadora.

- Você já usou essas máscaras?

- Milhões de vezes.

- É que você faz parecer tão fácil... E eu... Eu simplesmente não parei de sentir o cheiro. O sangue continua ali e minha jugular continua pulsando pra senti-lo. A... A Outra está gritando aqui dentro.

Eu estava começando a perder as esperanças sobre mim mesma. Obviamente eu não iria conseguir durar muito tempo perto do sangue fresco, mesmo com milhões de mascaras. Nada fazia o cheiro passar. Ele então pôs as duas mãos no meu rosto, me obrigando a olhá-lo. Eu pude ver as águas cristalinas que se moviam por dentro daqueles olhos cor de prata. De repente, o sangue, o cheiro, o mundo e até mesmo eu tínhamos saído de foco.

- Não é fácil e as coisas não vão melhorar. Concentre-se. Entendeu? Concentre-se. A sua respiração só faz com que o sangue pareça mais apetitoso, então não respire. Não deguste, não vacile. Você precisa ser forte e se concentrar. Nunca foi fácil pra mim e ainda não é. Mas você não é como eu, Isa. Você é humana. Você acha que não é, mas você é. Enquanto eu... – e ele sorriu de uma forma magoada – Bem, digamos que eu seja... Como é que o seu amigo me chama? Demônio? Certo. Eu sou um demônio tentando passar por humano. Vê a diferença?

Eu conseguia ver a diferença. Mas ele continuava errado. Desde que eu tinha bebido o sangue de Pandora, tudo estava diferente. Eu não era assim tão humana quanto ele dizia. Agora aquele outro lado de mim, o lado vampiresco, estava mais acordado do que nunca. Todos os meus sentidos pareciam mais aguçados, todas as minhas forças pareciam mais duradouras. O sangue tinha me dado uma energia, um poder desconhecido. E por mais que eu quisesse me fazer acreditar que não foi por que eu quis, eu sei que é mentira. Eu nunca quis tanto algo em toda a minha vida quanto eu quis o sangue dela. Poderiam dizer o que quisessem sobre a minha índole ou sobre a minha força ou até mesmo sobre a compulsão de Josephine. Mas ninguém poderia me fazer esquecer da sensação do sangue na minha língua, no meu corpo, lavando o meu estomago e as minhas veias. Aquele calor intenso por todo o meu organismo, aquela sensação de plenitude. Não, não, ele estava errado. Eu não era tão humana assim.

- Eu não sou humana, Robert. Ao menos não totalmente. Não somos tão diferentes assim. Quer dizer, eu sou metade vampira. Eu sei que isso é perigoso e tal, mas é a realidade. E se eu tenho que ser sincera, acho que esse é o melhor momento.

Ele se distanciou, tirando do bolso um estilete de prata, entregando-o pra mim.

- Então faremos o que for necessário para que isso não a transforme em uma assassina.

Auch, essa tinha doido. Ele tinha razão. Eu não era uma assassina e muito menos um monstro. Ele tinha toda a razão. E algo no modo como ele tinha me olhado fez com que um arrepio subisse pela minha espinha. O que diabos eu teria de fazer com aquele estilete?

- O que eu vou fazer com isso?

Ele voltou à sua cadeira de observação, sentando-se majestosamente, com certa soberba. Os braços cruzados fizeram os músculos de seus braços saltarem pelo tecido da camiseta. Ele estava lindo. Lindo e perigoso, de uma forma que eu não gostava de ver.

- Você vai abrir aquela bolsa de sangue com o estilete e retirar o chaveiro do seu próximo armário. E, se fizer tudo direito, vai encontrar seu novo equipamento lá dentro, antes que o sol se ponha.

Dizendo isso, ele apertou no botão de cima do relógio dourado, fazendo-o tiquetaquear daquele modo irritante, que somente aquele maldito relógio sabia fazer. Marcavam trinta minutos. Trinta minutos para que eu passasse de uma vez por todas. E então tudo fez sentido, todo aquele mistério sobre qual seria a minha prova prática e de como eu iria recompor minhas aulas perdidas.

- Então essa é a minha prova?

- Sim, essa é a sua prova. E, a propósito, os minutos estão passando.

Eu o amaldiçoei por isso.

Ele achava que eu era o que? Alguma das suas vítimas para os jogos mortais versão damphir?

Bufando, rentei me recompor, sem respirar como ele havia me aconselhado.

Mas aquela maldita faixa de tecido não fazia as coisas parecerem melhores, eu ainda podia sentir muito bem o cheiro do sangue por baixo do algodão.


 


 

Relato de uma Despedida


Dezenas de ônibus se amontoavam pela linha de partida da rodoviária. E ele ainda nao conseguia entender como dois dias poderiam ter passado de uma forma tao absurdamente rápida. A menina parecia distante à sua frente. Os óculos borrados pela chuva e os lábios trêmulos indicavam que ela estava com frio. Ele secretamente esperava que ela colocasse as mãos geladas por baixo de seu casaco pesado, mas nao tinha coragem de pedir. Parecia ousado demais de sua parte. Como que lendo seus pensamentos, ela fez exatamente o que ele tanto pedia por telepatia. Sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha: suas mãos macias estavam mesmo geladas. Muito geladas. E ele nao se importava. Não conseguia parar de pensar sobre o quão injusto aquela cena parecia. Se pudesse, jamais tiraria seus pés dali. Mesmo que os all stars estivessem encharcados, graças à longa caminhada que tinha feito sobre poças e pingos incessantes de chuva. Suas roupas estavam pegajosas e quase podia sentir a gripe que lhe abraçaria assim que acordasse de manhã. Ela também nao estava muito apresentável, com uma touca maior do que a sua cabeça, os cabelos desgrenhados, as botas cheias de barro. Ainda assim, estava linda.

- Não quero ir embora.

Ela sorriu, de forma triste, enquanto suas unhas sutilmente apertavam suas omeoplatas, dando-lhe um arrepio. Ele ia sentir falta disso.

- Não vai...

A voz pedinte ressonou por seus ouvidos. Ele não queria ir, mas tinha. Em breve tudo mudaria, ele sabia disso. Mas será que ela esperaria? Era agosto, tinham ainda quatro meses de encontros rápidos, beijos sedentos e abraços imaginários até que tudo pudesse ser real. Ser verdadeiramente real. Como sempre quiseram que fosse. Como todos os namoros deveriam ser. Sem saudades infinitas, desconfianças ou descrenças por parte da família. Sem mais noites em claro no computador, tentando preencher o vazio das presenças um do outro. Sem mais esquecer os traços do rosto dela, do perfume que o corpo dela emanava, do toque gelado nas suas costas. Ele sabia muito bem o que queria. Queria ela, agora e nada mudaria isso. Nem mesmo o ônibus que o levaria embora sem previsão de volta em vinte minutos.

- Eu volto, amor. Tu sabe que eu vou voltar.

Ela sabia. Será que sabia mesmo? Depois de anos e anos se convencendo de que nunca esperaria por ninguem, ali estava ela: fazendo promessas que tinha medo de nao cumprir. Era uma garota forte e determinada, mas um pouco insegura. Tinha aprendido a não criar expectativas, a não sonhar com pessoas e a nunca sentar num formigueiro. Estava bem determinada a seguir suas próprias regras sobre uma sobrevivência segura no mundo até conhecê-lo. Até ele chegar como um furacão e destruir todos seus pré conceitos, todas suas regras inúteis. Ela sabia, acima de tudo, que amor nao durava.

Que as pessoas são livres e vamos todos morrer sozinhos. Ela tinha aprendido a não contar com as ações de ninguém e a ser feliz com ela mesma, sem necessidade de alguém para fazê-la sorrir. Mas isso tudo parecia muito desconexo e muito formal quando ela estava perto dele. Ele a fazia duvidar de suas crenças e a acreditar em seus maiores medos. E, mesmo que todas as suas células gritassem que ele estava mentindo, ela tinha confiança absoluta na palavra dele. Ele voltaria. Em breve. Ele iria vir por ela e eles ficariam juntos, talvez pra sempre. Ela sabia disso, no fundo da alma. Mesmo que seu corpo gritasse em objeção, mesmo que sua cabeça gritasse "RESPOSTA ERRADA", ela nao tinha escolha. Era uma dessas coisas que a gente simplesmente nasce sabendo. Tipo respirar ou algo assim.

- Eu sei. Eu sei que vai.

Ao redor do pequeno drama, milhares de pessoas corriam, com suas malas cheias. Pessoas que viajavam a trabalho, pessoas que voltavam pra casa, que iam pra casa. Pessoas que morriam, que nasciam. O mundo inteiro girando, enquanto eles estavam sozinhos numa dimensão particular. Sem tempo correndo ou nada mais que importasse. Estavam juntos e, no momento, isso era tudo que precisavam saber. Mas também, ambos sabiam que, assim que se separassem, tudo voltaria ao eixo normal. As noções de dia e de noite não mais se misturariam, mas seriam horas e tempos separados.

Os minutos iriam voltar ao eixo normal e rastejante, eles se fundiriam com a massa populacional e seriam apenas mais dois membros cinzas solitários, tentando dar certo sentido à rotina repetitiva. O dólar voltaria a correr, a água voltaria a ser gasta irresponsavelmente. As aulas começariam no dia seguinte, com os colegas iguais, os professores iguais, a vida igual. Os sentimentos se confundiriam e eles não mais estariam em êxtase. Seriam eles, normais. E não o eles brilhantes que eram quando estavam juntos. Mesmo que se conhecessem há muito tempo, nunca se acostumavam com a estranha sensação de renascer das cinzas quando se separavam. Quase como se o universo inteiro saísse de foco naqueles momentos pequenos em que se viam. Quase como se, quando se separassem, a força gravitacional caísse com toda a força sobre suas cabeças levianas.

Ela já sentia a leveza de seus passos tornarem-se, gradativamente, mais e mais pesados conforme o acompanhava até a porta de embarque. Sentia-se inútil. Queria, de alguma maneira, poder fazê-lo ficar. A paciência era inimiga de sua natureza, mas ela fazia o que podia. Podia ver a névoa cinzenta que se formava nos céus, uma projeção física do que se passava dentro dela. As estrelas estavam encobertas e tudo que ela podia ver ou sentir era a tristeza incerta de um calor abafado. Sem brilho.

Ele já conseguia ver o brilho desaparecer de dentro do seu peito. De alguma maneira, quase como que por mágica, ela fazia com que tudo parecesse mais nítido, mais brilhante. Ela tinha uma energia que o sugava até o fim e o fazia sentir coisas que já se julgava velho demais pra sentir. O peso de seus pés estava começando a voltar, quando a mão gelada dela ameaçava a soltar a sua mão forte e quente.

Eles se complementavam de uma maneira rítimica, como em uma dança, como o yn e yang. Mas, por algum motivo, ainda não podiam ficar juntos.

Num beijo urgente, se despediram. O motorista entra, com um ar arrogante, típico de quem não se importa com demasiadas histórias adolescentes alheias. Ele seguiu seu caminho para o leste. Ela, seguiu seu caminho para o oeste. Opostos que não tinham a força que deveriam para se atrair. Os primeiros pingos de chuva começaram a cair por cima da cebeça dela, ainda que a touca fizesse o péssimo trabalho de protegê-la. Suas mãos estavam começando a congelar, quando seu ônibus apontou na esquina. Ela estava cansada, feliz e triste. Não sabia como explicar como dois sentimentos opostos podem ocupar a mesma pessoa ao mesmo tempo, mas era exatamente assim que se sentia.

Pegou o lugar ao lado do cobrador, observando enquanto mais pessoas vinham da rodoviária lotada.
As gotas caíam em enorme lentidão pelo vidro sujo da janela. Suas lembranças estavam turvas, entre os sorrisos que ele lhe dera e os olhos ávidos de quem observava a rua na parada. Lá fora, corpos se amontoavam por passos quebradiços em uma noite comum de inverno. Lá dentro, ela não notava. Estava ocupada demais sorrindo por ele.

A maluca do 529

Jamais amei tanto alguém quanto penso que amo agora. O quão perigoso isso pode ser? Aos olhos de Teresa, tudo parecia incorreto. Ela não compreendia. Disse-me para esquecê-lo, mas como poderia? O garoto não cansava de perseguir-me campos a fora. Tão mau vestido e mau educado e mau cheiroso e mau tudo quando poderia ser. Ele era o mau em pessoa, Teresa dizia. E eu, eu deveria ficar bem longe dele. Mas talvez seja algo criado no âmago da minha imaginação, essa febre, esse amor. Papai se ri de mim, se falo disso. Dizem que é feio e raro. E que, no fundo, não existe. Dizem que é uma técnica que os escritores antigos criaram para chamar a atenção de donzelas entediadas e lucrar com suas historias irreais. Honestamente, não posso acreditar nisso. Se o que eu sinto é uma doença como dizem, então que sentido há para se viver?

Teresa observa-me, de canto de olho, enquanto observo, de canto de olho, ao rapaz que agora está distante. Ele não observa ninguém, e nele acaba o estranho ciclo. Mas por ele, recomeça minhas angustias. Será que estou ficando louca? Não quero acabar como a Dany do terceiro andar que fora internada semana passada, dizendo que morria de amor. Ainda posso ouvir os gritos que saíam pelas portas do fundo de seu apartamento, o qual, infelizmente, dava direto para a janela do meu quarto. Dany gritava, esperneava, dizia coisas sem sentido. Dany foi para o hospício e seus pais se separaram logo em seguida. É assim que funciona por aqui: Pessoas se casam, tem filhos e se separam assim que os filhos vão embora para estudar ou trabalhar em algum lugar distante como a Rússia ou o Japão. Não entendo qual é a lógica, mas nunca vi amor nenhum como os que existem nos livros. Pelo menos não até senti-lo. Ou achar que o sinto. E, agora, sinto medo de ter enlouquecido.

- O que fofê eftá olhando?

Aquela voz esganiçada tira-me do torpor como um sino de igreja mal batido. Teresa era minha vó, e já passava dos setenta anos. Era meio surda e faltavam-lhe dentes. Por isso falava tão alto e tão errado ao mesmo tempo. Tentei pensar rapidamente em uma desculpa, sem muito sucesso.

- Para a macieira.

Duh. O menino estava embaixo da macieira. O cabelo louro reluzia sob o sol, a pele bronzeada combinava perfeitamente com seus traços. Era lindo. Meu Deus, como era lindo.

Ela fechou os lábios enrugados, fechando-se em uma carranca de desaprovação. Pegou-me pelo braço em um aperto forte e trancou-me em meu quarto sem que eu pudesse sequer negar.

- Vofe va fifar ai ate pafar de penfar effaz coifas. Enfendeu?

Fiz que sim com a cabeça, sem muita vontade de discutir novamente. E, também, sem muita vontade de acabar sendo internada como louca. Vovó dizia que eu deveria me manter longe dos meninos, por que eles tinham o estranho costume de despertar nas mulheres seus dragões. Era assim que chamavam aquele calor que me subia pelo corpo inteiro quando seu olhar retribuía o meu envergonhado. O menino havia despertado o meu dragão, e temia que fosse tarde demais para dar ouvidos a quem quer que fosse que tentasse me dizer o contrário.

Corri até o parapeito da janela, tentando manter meu olhar em suas costas nuas, quando ele, como que queimado pela minha intensidade, virou-se. O brilho dos olhos verdes queimaram minhas bochechas. Não tive forças para desviar-me e então tudo foi muito rápido. Em um minuto, ele estava no meu quarto. Sei que gritei. Sei que ele apertou-me com força contra a parede. E, do mais, não lembro. Sorrimos, conversamos. Meu pai entrou no quarto, sedaram-me. O garoto gritava, seus pés chutavam o ar. Minha vó sorria, de uma forma assustadora. As gengivas proeminentes debatiam-se com prazer contra a língua envelhecida enquanto as drogas corroíam minhas veias. Senti vontade de gritar, de correr, de salvá-lo. Mas não pude. Estava inerte sob o chão de mármore. Algumas mãos levantaram-me, deram-me uma injeção. De resto, não lembro.

Quando acordei, no outro dia, estava em uma sala branca. Paredes de vidro separavam-me de outras meninas, igualmente nuas. Um pesadelo para uma vida construída em cima de puritanismos. Dany olhava-me, encantada. Todas, na verdade, olhavam-me da mesma maneira. Foi quando, por um susto, percebi que sangrava. Minhas pernas tremiam. Será que haviam me machucado? Será que eu estava com hemorragia? Foi então, que tudo ficou muito claro. O sangue... O sangue havia descido. Por isso o calor. Por isso o dragão. Agora eu era uma mulher feita. Mulher feita e louca. E apaixonada.

As regras diziam que ninguém poderia manter presa uma mulher feita. E eles me soltaram. Disseram-me, nas ruas, que anos haviam se passado desde que a maluca do 529 havia sido pega. Disseram-me que a menina gritava e chutava ao vento e que havia um bonito lenhador no seu quarto. Disseram-me que a velha louca havia morrido e, com suas bruxarias, levado o filho junto. O lenhador louro, havia se casado e ido pra Sibéria. Pintara o cabelo, trocara de nome. Fiquei atordoada. Quantos anos tinha? Disseram-me que a menina tinha dez anos. E, pelas minhas contas, sete verões haviam se passado dentro das paredes de vidro. Sete verões para que meu sangue descesse.

Troquei de nome, mudei de lar, esqueci-me do garoto. E, finalmente havia aprendido que o amor era coisa de livros de donzela entediada. Nada pelo que se lutar, nada que valesse a pena ser lembrado. Nada além de uma paixão de criança que quase havia me matado.

Em Defesa do Tecido Adiposo

Estava esses dias a atravessar a Protásio Alves calmamente, quando me dei conta de algo essencial para o mundo: Se ele realmente te ama, não vai querer que tu emagreça. Sei, não é a coisa mais comum de se pensar em uma manhã qualquer, ainda mais quando o pensamento em questão não faz o menor sentido quando se está atravessando a rua, mas essa não é a questão. O fato é que me atingiu em cheio a cabeça e pude perceber que era verdade. Acho que foi o sussurrar astuto de algum anjo nos meus ouvidos para que falasse isso para o mundo. Talvez tenha sido um sinal divino. Não importa. Só preciso escrever sobre isso, antes que me esqueça. Então lá vai a conclusão que eu cheguei: Quem ama, ama por completo.

Me dói no coração ver tanta mulher bonita querendo parecer um palito pra querer agradar o público masculino. Tanta gordinha sexy se achando feia por que tem alguma sem-sal-anêmica estampando as revistas como o símbolo do corpo padrão. Meninas, vocês não precisam disso. E, caras, vocês são uma vergonha para o ego masculino se realmente consideram sobre o assunto. Ou se esqueceram que no século XVIII a barriga proeminente era a coisa mais sensual que uma mulher poderia ter? Claro que se esqueceram. Preferem que a gordura esteja recheando as coxas e a bunda, repletas de celulite para agradas vossos desejos estúpidos. Sério? Mulher melancia é mais desejada do que a Adele? Daí virão os mais liberais e dirão que a Adele não tem "AQUELAS" coxas. Claro que não. A genética abençoada dos coxões só cabe a nós, brasileiras sofríveis que precisam se cuidar para não acabar como monstros mitológicos da ancas estupidamente largas. Bom, meus amigos, a mulher melancia não tem AQUELE rosto. AQUELA voz. AQUELA criatividade. Não sou fã da Adele e muito menos da Mulher melancia. Obviamente, admiro muito mais a uma do que a outra por questões obvias que somente seriam duvidosas caso eu possuísse um pênis no meio das pernas e tivesse os olhos nos testículos para defender tamanha atrocidade.

Se ele te ama, não vai querer que tu emagreça. Repito e repito de novo, continuamente, quantas vezes eu quiser. Homem que é homem gosta de carne. Mas homem que é homem gosta de cérebro também. Afinal, se assim não fosse, vocês poderiam viver felizes com uma criação infinita de cabras ou uma coleção generosa de bonecas infláveis. E, que Deus me abençoe, estou profundamente errada. De uns tempos pra cá, tenho vivido de forma pacífica com o sexo masculino. Não tenho atacado nem suas imaturidades, nem suas burrices, nem suas grosserias, nem sua falta de sutileza. Na verdade, tenho deixado os campos de guerra para dar espaço a uma enorme bandeira branca de trégua enquanto penso sobre largar de vez essa vida de agressividade. Algo bem difícil de se fazer depois de uma vida inteira sendo boa em odiar, mas a gente tenta. E estou, com todas as minhas forças (choquem), tentando ser pacífica e leve. Não sou boa nisso. Minha escrita tem a tendência em ser agressiva com coisas que não suporto (i love it!), mas tenho certeza que vocês são machos o suficiente para me aguentar (não são?). Parei de provocação. Juro.

Se ele te ama, não vai querer que tu emagreça. Entendeu? Não vai querer mesmo. Mulheres, parem com a nóia. Amor de verdade não se importa. Se ele te ama mesmo, não vai querer que tu emagreça. Se ele te ama MESMO, é capaz de até engordar por ti se isso for te fazer feliz e se sentir menos sozinha. Se ele te ama, tu vai continuar linda de qualquer maneira. Pra ele tanto faz se é loira, morena, gorda, magra. Vai continuar te amando. Certo, meninos (e se vocês negarem, invado suas casas de noite e taco fogo em vossos membros)?

Claro que não me refiro à obesidade mórbida. Isso sim seria preocupante e dai a coisa muda totalmente. Daí eu apoio que o cara queira que tu emagreça, por que, minha amiga, obesidade demais pode acabar com a tua saúde. De que adianta não ser anoréxica se tu for tão gorda a ponto de ser doente? Não, não e não. Saúde acima de tudo.

Agora, se tu for uma daquelas gordinhas lindas e simpáticas que trabalha, estuda, come um xis tudo no almoço e ama rock'n roll, eu estou do teu lado para se manter assim. Seja gordinha e seja feliz e seja sexy. E se o bundão do teu namorado não pode viver com isso, sempre haverá um que possa. Acredito que os direitos da mulher vão muito mais além do que aborto ou prostituição. Existe muito padrãozinho precisando ser quebrado, muito dogma antigo que precisa sair de circulação. Ser gorda hoje em dia é quase um protesto contra o sexismo. É uma revolta da mulherada contra essas agencias de moda que só contratam meninas com as costelas expostas e os peitos muito mal desenvolvidos. É um grito de guerra contra a mídia, os homens e as revistas de dieta que lucram em cima da falta de autoestima.

Diga não à magreza exagerada. Diga não à obesidade mórbida. Diga não ao neandertal com cérebro de milho que segura tua mão. Se ele te ama, ele não vai querer que tu emagreça. E isso não vale apenas para os homens, vale também pra família. Quem te ama, vai te achar incrível de qualquer jeito. Com setenta ou quarenta quilos.

Hey GNT, Playboy, Vogue, Elle, Maire Claire e companhia... Vivam com isso.


 


 


 


 


 


 


 


 

"Por que há direito ao grito, então eu grito". – Clarice Lispector

Lua Azul

Agosto se vai, e com ele, morrem meus sonhos adiados. Eu pude ver as estrelas se distanciando, como pontinhos mortos no céu. Não era eu, era você. Eu pude ver a magia e puder ficar cega também. Mas então lembrei, de tudo. O ciclo incessante do nosso ciclo circular. Meio redundante, meio maluco, mas tudo bem. O ciclo morre quando a repetição enjoa. E se eu não enjoar, o ciclo nunca acaba? E se eu me apegar, como vou fugir? Não era eu. Era você.

Entra setembro, uma passagem mística de mês para mês. Duas luas cheias tomaram o céu de agosto e, segundo os mitos, é uma resposta feminina do universo para a abertura. Claro, claro que tem a ver com aberturas. Tudo que é feminino tem de vir com algum tipo de buraco embutido, quase como uma sátira à nossa amada vagina. Não sei se eu sou doentia ou se são as coincidências que realmente fazem sentido. Não consigo acreditar em coincidências. Não consigo suportar que meu futuro seja tão incerto que eu precise acreditar em determinadas forças mágicas para embalá-lo.

Onde estão os meus sorrisos de verão? Ela está do outro lado do mundo sorrindo com desconhecidos. Ele está na vizinhança ao lado, beijando alguém que pensa ser sua para sempre. Mas não será. Meus sorrisos se foram com pedacinhos de mim que se dispersaram pelo universo, como estrelas que carregam o brilho da minha alma. Ontem eu achei que tivesse chorado de saudade, mas não foi. Era ódio mesmo. De súbito, meu eu selvagem rasgou minha pele e me deixou em carne viva depois de um banho gelado e violento. Minha mãe não entendeu, eu também não.

Mas sinto que algo aconteceu. Quase uma epifania, creio. O céu ficou mais distante e eu pude sentir a brisa morna que veio do norte. Meus braços se abriram em total confiança e eu pude sentir. O pressentimento de que coisas boas hão de vir. O pressentimento de que o fim do mundo será apenas o início. Um recado da lua para que eu fizesse meus preparativos e me despedisse devidamente. Olhei para trás, com certa nostalgia. A criança que chorava escondida no cantinho entre o fogão e o armário velho estava aos soluços. Sorri. Ela não sabia pelo que chorava, mas também não sabia que em breve acabaria. Vi flores nascendo pelos caminhos que nunca percorri, mas já conheci em sonhos. Uma estrada de pedras íngremes ameaçava se partir em rochas pontiagudas conforme os trovões da tempestade próxima se intensificavam. Olhei para trás e fiquei, de súbito, feliz. Não me importava mais, o pior já havia passado.

Lá em cima, o brilho da lua se intensificava e, nos meus braços, pude sentir o leve queimar azul. O planeta começou a girar ao contrário. Meus monstros estavam calmos, por pouco tempo. A pele em carne viva que fora destroçada na noite passada, agora cicatrizava. Os anjos voavam em círculos no céu negro. Suas asas brilhavam, assim como eu. A mudança havia chegado, junto com meus sorrisos de inverno. Tardiamente, deixei que meus lábios se curvassem para cima, para demonstrar que podia senti-los, os sorrisos. Tardiamente, agradeci. Era noite de lua azul, todos os pedidos seriam atendidos. A noite em que os velhos ciclos haviam sido quebrados para começar outros. Mas não seria mais assim. De agora em diante, continuarei apenas em linhas retas, curvas, paralelas e um pouco incertas. Mas nada de círculos.

Ousei apenas mais um olhar para trás, imaginando o que poderia se passar antes que tudo se perdesse. Pude ver minhas estrelas dispersas em uma nova dimensão. Meus sorrisos eram guardados em lápides de ouro, num cemitério distante. Os fantasmas felizes acenavam tchau, o que eu vi como um bom presságio. Meu passado se despedia com amor. E então eu segui. Prometi a mim mesma que tentaria nunca mais olhar pra trás. Tentaria.


 

domingo, 2 de setembro de 2012

O Galo

Impotência, inutilidade, medo, pequenez. Chame como quiser. A verdade, é que as palavras jamais conseguirão expressar com exata precisão o que eu sinto ao ver aquilo. O que? Um galpão. Um imenso, fedorento e decadente galpão. Milhares de olhos tristes emolduram os rostos grandes. Bolas negras de inocência dilaceram meu coração em bilhões de pedaços. São os olhos da carne. É a comida demonstrando sentimentos adversos, tentando impor, de forma inútil, a vida que nunca lhes pertenceram.

O que acontecerá depois de hoje? A quem pertencerão?

Um futuro incerto, recheado de crescimento econômico está sendo pactuado em contratos legais de compra e venda. Eles não são animais, são coisas. Bens que nos pertencem e podem ser vendidos, assassinados, comidos ou amados. Nas jaulas frias, flashs de câmeras fotográficas inibem uma psique descontrolada. O bico frenético do galo negro morde, com demasiada ansiedade, meus dedos trêmulos.

"Você vai ficar bem", tento dizer de forma inútil, enquanto percebo a mentira que escorre pela minha fina linha de voz. Falo como um sopro. As lágrimas me veem aos olhos, transformando diversos sentimentos em uma gota de agua palpável, a matéria da minha subjetividade não compreendida. O galo tem o olho esquerdo machucado, as patas são enormes, o corpo beira o absurdo. Hormônios. O animal foi vendido por quinhentos reais, as placas indicam que ele é o vencedor no quesito de reprodução de matrizes. Misturar raças e rações é o segredo para essa geração de aves mutantes. Claro, precisamos de galinhas fortes, recheadas com proteínas induzidas para nos dar alguma dose de energia. Mas ele não sabe, não percebe. Seu instinto diz que precisa reproduzir, seu corpo pede por comida, seus olhos ardem. O estresse diminui sua produtividade como galo. Meu Deus, será que o galo sabe que é galo? Acho que não. Está perdido na escola do professor Xavier para super dotados. O galo é um super galo. O galo me bica, pra tentar impor sua grandiosidade. O galo é apenas o galo que engole medalhas pela garganta e, ainda assim, não deixa de ser galo. Mas eu, a garota de fora que esconde o choro, sei que ele é apenas um galo que foi induzido a ser, literalmente, grandioso.

Vou embora, me despedindo daquele ser perturbado. Dobro à direita e encontro mais jaulas. Gaiolas pequenas enfestadas de animais sensíveis de pelugem branca reluzente. Eles são os melhores no quesito de pelugem, os melhores no quesito de carne, os melhores no quesito de venda. São coelhos. As orelhas pontiagudas saem por fora dos buracos minúsculos, os flashs desafiam a capacidade visual dos animais, induzindo-os a um estado de torpor. Os corpos trêmulos demonstram fragilidade. As placas brancas de madeira rústica, demonstram preços. Eles são separados de acordo com seus quesitos mais impressionantes. Crianças se amontoam à minha frente, com os dedos pequeníssimos a tocar-lhes o pelo premiado. Mães sorriem, tiram fotos, explicam a vida do ser que está enjaulado como algo banal, um destino certo, uma beleza que está ali para ser vista e depois esquecida. Nada de nos aprofundarmos. Corações tão rasos quanto seus interesses. Eles são a base sólida de um mundo já corrompido, a ignorância em massa que carregará para sempre os mais aptos nos ombros. A ignorância que alimenta a violência, que educa com cegueira, que vive em vão, que morre sem orgulhos.

Ao lado, uma loja de roupas vende casacos de pele, paralelo a uma loja de filhotes de chinchila. Mais fotos, mais crianças. O peso de não se ser ignorante em uma terra enfestada de burrice. Tento sair dali, trancar minha respiração, fechar meus olhos. Temo não suportar o abismo que se abre em frente aos meus passos febris. Mas suporto. Suporto o suficiente para chegar até o galpão ao lado, onde o meu principal destino se encontra: os bovinos.

Nada de jaulas, nada de flashs. Aqui, há somente vacas, bois e cheiro de estrume. Placas enormes indicam os melhores matadouros, a melhor vaca para alimento, o melhor touro para reprodução. Cartazes esplendorosos exibem, com certa soberba, o orgulho de um boi em especial. Não lembro com exatidão o nome dele, mas sei que era muito, muito especial. Seu Sêmen foi vendido para dois continentes. Sua espécie, sua raça, ou sei lá o que, eram do mais alto escalão de linhagem bovina. Se você quer carne macia e animais dóceis, venha até mim. Se você quer animais submissos e uma linhagem mais rápida, venha até mim. Meu boi é o melhor e maior reprodutor do mundo. Venha até mim.

Eu vou.

Vou até o boi de quem tanto falam e não vejo nada além de um boi. O boi que, de tanto ser exaltado como boi, também pode se ter esquecido de que era boi. Mas eu... Ah, eu sabia que ele era um boi. Ele não me vê, estava ocupado demais regurgitando aveia. Mas eu estava lá. E eu via. O tamanho anormal, o pelo excessivamente penteado. O principal objeto de consumo, a melhor propaganda possível do objeto mais caro. O capitalismo agindo na sua forma mais pura para manipular a pecuária de que tanto dependemos. Continuo olhando e vejo apenas um boi. Um boi lotado de compromissos, fotos, folders, medalhas, filhos e linhagens inteiras de comida. Ao lado, mais bois. Todos os tipos de bois. Não conheço raças nem nada, mas sei distinguir cores. Bois brancos, bois marrons, bois pretos. Todo tipo de boi. E todos os bois que eu vi, devolviam o olhar meio incerto. O destino que nada lhes trazia, a compaixão que não lhes era devida. Olhos tristes. Bolas negras, repletas de mistérios e amores não percebidos. Bolas negras que continuavam a perfurar meu coração.

Será que o galo sabia que era galo ou apenas se convencia do contrário?

Por que estou começando a perceber falhas na minha identidade que não condizem comigo mesma. E, talvez, também ache que sou um galo. Na minha fraqueza, na minha pequenez. A indústria que consome meu dinheiro, de forma indireta. A pecuária que me engole pelas pernas contra a minha vontade. O mundo gira, enquanto acho que sou galo. E, nesses giros em descompasso, me perco numa identidade já não tão natural. Sou um galo que não se reconhece como galo, e, talvez por isso, me intitule como humana.