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segunda-feira, 23 de junho de 2014

A pianista

Meus dedos suados escorriam, trêmulos, pelas teclas do piano. Tentei me concentrar em como minha tia ficaria feliz com a apresentação. Em como as crianças do orfanato seriam beneficiadas com o dinheiro arrecadado pelo espetáculo daquela noite. Fechei meus olhos, imaginei a partitura na minha cabeça. Dó, ré, dó, sol maior. Mas nada disso fazia sentido quando meus olhos se cruzavam com o dele, me fitando de uma maneira nada cortês do outro lado do salão. Tentei ignorar meu coração, que parava de bater a cada piscada. Feche os olhos, concentre-se. A voz na minha cabeça era severa o suficiente para me manter concentrada. Titia sorria na primeira fileira, de braços dados com seu marido barbudo. Eu gostaria de demonstrar calma e decoro. Vã utopia. Joseph me acompanhava com o violino, à esquerda. Percebi que ele sorria para mim, como se fôssemos cúmplices de um mesmo crime. Corei. Estava tão perto de me desmanchar em suor que fiz o maior esforço para me manter distante. Não retribui o sorriso. Fechei os olhos de novo. Faltava pouquíssimo. Apenas mais uma folha da partitura. Apenas mais um minuto. As pessoas pareciam boquiabertas. Senhoras choravam. Arrisquei olhar novamente para ele, o que foi uma péssima ideia. Seus olhos verdes queimavam a minha pele. Ele teve a audácia de levantar o lábio em um sorriso intenso. Parecia o próprio demônio tentando seduzir o meu talento. De alguma maneira, meus dedos se mantiveram no piano, como se já soubessem o caminho de cor. Não conseguia tirar meus olhos dele. Então a música se acabou e eu só me dei conta por que as pessoas começaram a aplaudir e postaram-se de pé, inclusive minha tia que estava inflada de sangue nas bochechas rosadas, parecendo um balão de tanto sorrir. Joseph, de maneira muito educada, postou-se a meu lado e segurou minha mão em frente ao público. Fizemos uma reverência tímida e saímos. Tentei dar uma última olhada no homem da plateia, mas ele havia sumido na multidão. Graças aos céus. Não conseguiria manter a compostura se ele permanecesse me encarando de uma maneira tão perturbadora.

O Brasil e o Segundo Sexo

Vivemos em uma cultura patriarcal, ou seja, uma sociedade onde o homem controla e produz suas próprias regras. A mulher, sendo considerada como parte figurante no processo socioeducativo, raramente tem seus ideais, suas metas e suas concepções levadas em consideração. O machismo tem suas raízes cravadas nos costumes brasileiros desde a época do descobrimento, quando os europeus invadiram nossas terras e trouxeram, junto com a violência, seus costumes cristãos e sua educação já baseada em um sistema de leis compostas pelo patriarcado. Como bem assevera Simone de Beauvoir, a mulher, desde as épocas mais remotas da história da civilização humana, foi considerada um “outro”, um ser ambíguo, diferente da simplicidade masculina, tendo sido, ainda na idade antiga como bem lembrado por Aristóteles, considerada igual aos animais ou aos escravos, alguém que tinha nascido inferior e tinha, como destino, o dever de servir ao homem. De acordo com tal histórico, o Brasil não está livre de tamanho arcaísmo, composto por leis que beiram a hipocrisia. Um país que assevera no artigo 5º da constituição federal o direito a todos os cidadãos de igualdade e equilíbrio. Uma população medrosa e preconceituosa, que busca suas virtudes a partir de uma visão pré-formulada. A população brasileira (se não a mundial) é manipulada pela mídia e tem, na sua base educacional, a divisão desigual de determinados comportamentos entre os gêneros, baseando-se em fórmulas superficiais de controle estatal que beiram o ridículo. A mulher, está sempre no limiar da falsa concepção de liberdade, tendo o “dever” subentendido de ser submissa, comportada, “prendada” e devidamente calada diante de um Estado opressor. O que a pesquisa revela nada mais é que uma constatação obvia, escondida pelas entrelinhas de uma constituição hipócrita.

In Memoriun

Os olhos dela tinham a cor do pôr-do-sol. Talvez quando a morte chegasse não fosse tão triste. Eu poderia manter o sorriso dela nos meus olhos cerrados. Dizem que temos de aproveitar o tempo. Mas o tempo corre o tempo inteiro. No fim somos nós querendo tempo para poder ter mais tempo. E tudo que eu consigo pensar era que ela tinha nuvens nas sobrancelhas. Eu a ouvi cantando e confundi sua voz com as trombetas apocalípticas dos serafins. Seus pés eram tortos. Lembro de quando ela pegou na minha mão e disse que de-veríamos apenas ser felizes. Eu sorri para ela. Eu queria ser feliz também. Mas a felicidade é tão orgulhosa quanto uma mulher difícil: Você tem que correr atrás dela e provar que a merece. Então eu corri. Bom, nós corremos. Ela dizia que os pássaros tinham mais inteli-gência do que todos os nossos professores juntos. Eu concordava. Era embalado por aquela alma que era tão mais velha que a minha. Era desnorteado por aquela menina que tinha a minha idade, mas o coração pesado. Esse talvez tenha sido o meu maior erro. O meu maior desespero. A coisa mais feliz na vida de uma criança é ser aceito. Ela me aceitava. Então eu apenas me fundi nos cachos dourados do cabelo dela e nunca mais me senti sozinho. Éramos inseparáveis, eu e aquela menina. Quando somos crianças, sentimos o cheiro doce do ar, confundimos nuvens com algodão doce, lambemos as gotas amargas da chuva. Crianças olham para a magia, com curiosidade e inocência. Eu a olhava como se estivesse encantado. Aqueles olhos pareciam ondas, me car-regando em passos leves pela maresia. Quando ficamos velhos, voltamos a ser cri-anças, mais enrugadas e mais machucadas. Mas talvez, se eu apenas conseguisse manter o som da risada dela nos meus ouvi-dos doentes, eu poderia dizer que tive uma morte feliz. Não se sabe o que acontece do outro lado. Não se sabe quem vamos encontrar. Mas talvez, quando eu finalmente souber, eu possa dizer que ela foi o anjo que me deu o passe livre para o paraíso. Quando você não tem mais nada no que se agarrar, quando você percebe que simplesmente não pode mais voltar atrás, a vida adquire uma nova tonalidade. Minha existência recebeu essa bruma misteriosa, essa fumaça densa que se espa-lhou pelo passado e me fez enxergar ao amor com novos olhos. Lembrei então do meu primeiro dia na praia. Aquela água azul, tão imensa. Não haviam tijolos, nem muros, nem cercas com arames. A sensação de liberdade que o vento proporciona. A areia macia, tinha a cor da pele dela. A sensação quente nos pés, quase como se a terra nos quisesse puxar de volta para dentro do barro. Lembrei de quando vi a neve cair pela primeira vez. Os floquinhos de gelo caindo no meu nariz. O anjo que fez outro anjo no chão. A menina dizia "Venha, brinque comigo". E eu ia. Tinham então três anjos no chão. O meu, o dela. E ela. O primeiro beijo. Foi dela. O primeiro amor. Ela. Minha mãe era uma senhora gorda e meio carente. Amorosa demais, mas dispersa também. Meu pai era bom com sapatos e sorvetes. Gostava, principalmente, de tomar sorvete na sapataria. Meu primeiro sorvete foi dele. Meu primeiro luto também. Então você fica velho, adquire experiência. A magia não existe. As pessoas vão embora. Os países mudam. As guerras matam. Os casais criam. Você procura por dinheiro como se viver fosse algo renovável. O que é muito triste de se acreditar. Quando você chega na ala terminal do hospital, percebe que passou metade da vida preocupado com besteiras que não fazem diferença. Passou metade da sua existência simplesmente vagando pelo mundo, acreditando que seria alguém "maior" ou "melhor". Gastou metade do seu dinheiro com coisas que não lhe engrandecem, gastou metade da sua energia com pessoas que não sentem absolutamente nada por você. Arrependo-me de muitas coisas, mas ela não está em nenhuma delas. O amor, se não fosse tão incrivelmente maluco, poderia ser a nossa cura. Mas talvez, só talvez, nós não precisemos de amor. Talvez o que a gente precisa seja de mais confiança, mais solidariedade, mais esperança. Dizem que você encontra isso na espiri-tualidade. E isso é algo que fica realmente difícil quando você adquire maturidade o suficiente para entender que as religiões são crenças disseminadas pela ignorância. E então você duvida de Deus. Você passa também a duvidar de si mesmo. Você diz "eu me entrego, eu não quero mais saber de nada". E você apenas nasce para morrer. Essa é a grande verdade da vida. Eu, você, o amor da sua vida, seus filhos, seus pais, seu vizinho corno. Todos nós não temos nenhum propósito na vida além de morrer. Nascemos com o destino lacrado. Saímos de um útero e estamos, irreversivelmente, fadados a ir para o caixão. Por isso viva sua vida de modo que, quando você der o seu último suspiro, quando você fechar os seus olhos pela última vez, quando você tentar acompanhar o terço da sua vó para entreter o medo, tenha algo bom o suficiente para acreditar. Dedi-que-se a alguma coisa, qualquer que seja ela. Beethoven deve ter pensado na sua música. Imaginado os tons que nunca escutou. Da Vinci deve ter imaginado os olhos enigmáticos de sua Monalisa. Madre Thereza deve ter agradecido a Deus por sua maravilhosa existência. Eu só conseguia me lembrar de como as rugas dela lhe caíam tão insuportavelmente bem conforme a idade avançava. Eu não conseguia ver nada além disso. Enquanto as sombras me envolviam e as certezas eram dissolvidas, eu a via. No fim do túnel. Como uma luz, colorida, faíscas que saiam do meu coração. Não sabia se ela tinha uma alma, se seríamos salvos. Nunca toquei nenhum instrumento. Nunca escrevi um livro. Nunca fiz um filho. Mas eu a amei até o fim da sua vida. E foi ela quem eu vi na minha frente, quando as luzes se apagaram. Tenha certeza de ter amado alguém que lhe faça sentir menos monstruoso quando você morrer. Tornará as coisas mais fáceis para você. Tornaram as coisas mais fáceis para mim.

quinta-feira, 12 de junho de 2014

The Scientist - Coldplay

Por favor, me leve de volta ao início. Por favor, não deixe que se acabe. Eu imploro. A você, a mim, a Deus, ao SUS. Chame uma ambulância, concerte o meu coração. Remova minhas cicatrizes. Eu preciso me erguer, deixar que se reconstruam os meus ossos quebrados. Ele está morrendo. O sentimento, em coma. Suas palavras não fazem muito por mim agora. OS aparelhos estão gritando. Um bip atrás do outro. O batimento cardíaco está instável. A respiração está fraca. Por favor, não deixe que isso se vá. Esteja aqui. Banque o velório. Desculpe por pedir muito, mas acho que o amor precisa de um funeral decente e no momento eu não tenho forças para lidar com isso. Eu estou inerte, não há nada a fazer. Está morrendo, eu sinto. Sua voz, uma anestésico viciado. Não há nada que faça efeito. Seus olhos, um brilho apagado. Suas mãos me arranham, o carinho perdeu o sentido. O amor está morrendo. Por favor, me leve de volta ao início.`Por favor, apague as minhas memórias. Reinvete-se dentro de mim. Mude as suas atitudes, faça novas memórias. Deixe que o amor viva livremente, não permita o coma. Uma auto-indução. Medicamentos. Eu durmo em um torpor de drogas controladas. Meus enjôos servem de bode expiatório. Um anestésico no estômago para que o amor não doa. Por favor, não deixe que se acabe. Você, suas flores. As noites em claro, risadas, música boa. Por favor, me leve de volta ao início. Eu não quero que acabe. Estou numa luta solitária, então por favor, me diga que é recíproco. Eu preciso que você lute comigo. Segure minha mão. Entre no meu quarto, convença-o a ficar. Diga que você está aqui, cante aquela música boba. Diga que você não desistiu. Erga o meu colchão, injete drogas novas. Lute até o final, fique. Não deixe que isso morra. As paredes estão quebrando, tem rachaduras nas veias. Eu não posso me segurar sozinha. Um abismo em frente à minha cama. Os bips não param, embora lentos. Uma parada cardíaca, seus beijos não funcionam. Por favor, lute. Por favor, me leve de volta ao início. Antes que o fim aconteça. Fale sobre o início. Diga que lutamos demais pra que se acabe. Uma injeção de ânimo. Por favor, lute comigo, segure minha mão, me convença a ficar. Conquiste de novo o amor que morre. Você está tão inerte quanto eu. Vamos voltar ao início, refazer as memórias. Vamos começar novamente. Por favor, não morra. Eu não posso deixar que isso morra. Eu não tenho como bancar um funeral sozinha. Por favor, me leve de volta ao início. É uma vergonha que se acabe. Um bip que se expande. Você apenas observa, suas mãos caídas ao lado do corpo. Você apenas observa enquanto o abismo suga nossas memórias. Eu me mantenho inerte. Indiferença.

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Despedida

Está chegando a hora de ir embora. Sei disso, mas meus passos continuam imponentes, quase como se vivessem por si próprios. A vida é uma coisa muito engraçada quando você para e pensa sobre ela. Tipo quando você começa a trabalhar em um lugar por muita sorte ou quando você faz amigos que realmente valham a pena por puro azar. Quando você passa a andar pelas ruas mais bonitas da cidade inteira todos os dias e nunca se cansa de admirá-las. Quando a longa escadaria da igreja da Nossa Senhora das Dores passa a ser tão rotineira quanto os paralelepípedos que rondam os prédios históricos do velho serviço militar. Ou tipo quando você desenvolve um talento aguçado para crítico de restaurantes e tem um bloquinho de notas mentais com cada nome anotado com seus devidos prós e contras. Tipo quando você passa a ser praticamente vizinha da usina do gasômetro e visitante assídua do Cais do Porto. Ai, Deus. O Cais do Porto. Sim, a vida pode ser bem engraçada quando você começa a prestar atenção nos pequenos detalhes. O Cais do Porto, palco de algumas das minhas melhores lembranças, simplesmente foi fechado, trancafiado a sete chaves por  um interesse privado em fazer dinheiro em cima dos velhos depósitos de armazéns da historia de Porto Alegre. Uma coisa dessas não deveria acontecer. Simplesmente não deveria. Não parece certo que o dinheiro seja mais importante do que as milhões de memórias guardadas naquele lugar. Assim como também não parece certo que exista uma lenda sobre um negro escravo que ronda a santidade das escadas da igreja, mas é o que acontece. Você sobe três lances enormes de escada só para sentir-se no topo. E daí se lembra que aquela linda rua na frente foi palco de milhares de execuções racistas, originárias da boa e velha dominação de classes do opressor para o oprimido. E mesmo que a historia do lugar inteiro seja um misto de desastre e amor, você continua a nutrir sentimentos por ele, que não são espetacularmente bons mas também não são desastrosamente ruins. Você simplesmente gosta desse lugar. Você gosta de ver pela janela do ônibus as árvores que continuam intactas ali perto do gasômetro. Você gosta de caminhar pelas ruas e sentir a brisa gélida que vem do rio. Você gosta do barulho de soldados gritando e carros diminuindo a marcha e pessoas caminhando. Você gosta de ir a todos os restaurantes e de ter se tornado um perito na qualidade de cada um. Você gosta de ser conhecido pelas ruas, de dar bom dia e ter a segurança de que será respondido, ainda que mentalmente. Você simplesmente gosta, não por que deve ou por que aprendeu, mas por que é assim que funciona o rumo natural das coisas,  aquele costume suave de que tanto se esquecem os amantes depois de casados. É uma paixão amena, quase um assobio, que não deixa você em paz. Desistir dessa convivência diária com o ambiente, as pessoas alheias, o canto dos pássaros aleatórios, os gritos pontuais dos soldados... Dói. Dói de uma maneira quase bonita. Não que eu seja masoquista. Mas a dor é uma saudade alegre que se instalou no meu coração. E olha que eu ainda nem fui embora, mas estou em processo de despedida. Chega uma hora na vida, em que você menos espera, que nutrirá sentimentos inesperados por ocasiões inesperadas. E você vai ter que dizer adeus para tudo isso e saber lidar com a vida, dando continuidade aos sentimentos e ao gigantesco círculo vicioso que são as relações humanas. E vai doer. Mas não vai ser ruim, vai ser bonito. Ir embora de uma situação boa chega a ser gostoso de tão bom. É a alegre dor de se despedir sem estar, de fato, despedido. Você vai partir e deixar uma parte do seu coração ali, influenciando as energias, o canto dos pássaros, movimentando as ondas sonoras dos gritos dos soldados, badalando o sino da igreja às dezoito em ponto. Você vai embora, mas a dor é tão bonita, que você fica.

domingo, 1 de junho de 2014

Never More

As pessoas continuam sendo decepcionantes. Não importa o quanto eu procure, o quanto eu acredite, o quanto eu me importe. As pessoas continuam com as mesmas respostas, os mesmos atos, os mesmos erros. Não importa o bairro, a causa, o sexo, a cor, a classe social. Não importa nada, nenhum rótulo, nenhum preconceito é forte o suficiente para tornar as pessoas melhores. Infelizmente a alma não pode ser comprada, o caráter não pode ser moldado por cirurgiões plásticos, o coração não pode vir importado de algum mundo melhor. A única coisa na qual eu consigo pensar nessa maldita manhã de domingo é sobre quão burra eu consigo ser. Bebi, de novo. Acreditei, de novo. Esperei, de novo. Por que? Por que meu Deus? Pra provar que eu sou como todo mundo? Pra provar pra todo mundo como eu sou? Pra aumentar o peso do meu ego? Pra sufocar a minha baixa auto-estima? E o amor próprio que se foda. E meu sexto sentido que se exploda junto. E a minha percepção sobre o que deve ser feito ou não que desapareça. É isso que as pessoas fazem: Elas se divertem. Eu só não consigo entender por que encaro a arte de ser uma pessoa normal como algo tão complicado. Chega a ser absurdo.
Fazer amigos é difícil. Ser engraçada é difícil. Ser bonita é quase impossível. Ser inteligente é um desafio. Ser aceita, incluída, desejada. Tudo uma questão de luta em cima de luta. Maquiagem certa, roupa certa, fala certa, dose certa, movimento certeiro de quadril. O bom e velho instinto selvagem comandando as modernas relações humanas. A maldade pré-histórica da gente dominando cachoeiras artificiais. É isso. Fazer amigos é a coisa mais difícil do mundo e eu estou me aposentando. Never more. Chega. Meus livros são muito mais fáceis de lidar. Never more. Never more.