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quinta-feira, 22 de maio de 2014

The Funeral

Todas as folhas de outono são douradas, mortas e reluzentes, enfeitam o cinza massivo. E tudo é uma questão de futuro. Você vive da morte, como se fosse o inverno. Você morre nas ruas, rasteja entre os paralelepípedos. Não há esperança. Não há escapatória. Há apenas o nimbo, um portal aberto à sua frente. O amor é um privilégio, o doce veneno que corrompe sua vida. As pessoas constroem pontes invisíveis, laços pequenos que se enozam. E em cada segundo perdido, uma ponte é destruída. A cada minuto batido, você perde a certeza dos dias transcorridos. Não há esperança ou expectativas. Visto minhas luvas pretas, calço minhas botas. O cemitério está lotado de cores. Meu coração não bate, está cru. Se vivemos como mortos, como vamos saber se estamos vivos? O cemitério pode ser apenas um lugar colorido. Sua casa florida, as lojas de cores chamativas, o céu, um grande teto branco. Esse é o grande limite dos cegos. Morrer enquanto ainda estão vivos. Esse é o grande limite da morte, a vida escapando pelos poros, derrubada sob o paralelepípedo. Você precisaria da minha ajuda para entender. Eu precisaria de mim. Os sinos batem, vistam seus casacos. Sinais de luz encobrem o céu. Você veste sua melhor roupa, faz a barba, caminha ereto. A coluna bem alinhada aos pés. Você se move com elegância, quase como se a morte fosse um prêmio de consolação. Não há nada que eu possa dizer. O funeral nunca termina. Você poderia ficar vivo se ainda estivesse morto. Mas as folhas, elas são amarelas. As folhas também estão mortas. Como as pessoas que vivem antes de morrer. Estamos indo a um funeral. Eles chamam isso de felicidade. Você não vê, você não vê. E não há nada que eu possa dizer.

The Kill

Você caminha em passos lentos, digerindo cinzas, mastigando mentiras. Você me entrega seu coração, mas esquece que eu também entreguei o meu. E você pede que eu confie. Você pede que eu deixe você vivo. E há uma lápide. Debaixo de uma árvore, há uma lápide de gesso barato, construida sob vermes. Eu vejo você enterrando o meu coração. Enquanto eu mantenho o seu com o meu sangue. Você enterra o meu coração como se fosse um cadáver. Eu digo então, você sabe o que quer? Não, ele não sabe. E a garoa é companheira da névoa, assim como a traição é companheira da dor. Eu deixo você conectado às minhas veias, eu bombeio sangue, levando oxigênio suficiente para inflar sua alma. Enquanto você me enterra. Seus passos lentos sob o amontoado de terra. Meu corpo soterrado, logo abaixo das suas mentiras. Seu coração está comigo. Apodrecendo.

segunda-feira, 5 de maio de 2014

(In) Felicidade

Nove horas da noite. Faz frio lá fora. Faz frio aqui dentro. Um livro de direito civil. Dois cadernos incompletos. Uma mente perturbada. Facebook aberto. Pincelo cores nas vidas dos outros. Minha mente divaga, persiste em assistir de camarote a novela da vida  alheia.
Sempre gostei muito de The Sims. Reality shows eram meus programas favoritos na infância. Poder espiar por dentro da fechadura e enxergar o que ninguém enxerga era o grande sonho da minha vida. Sonhava com isso. Rezava por isso. Então Mark Zuckemberg veio, como o gênio da lâmpada mágica e concedeu esse desejo. Deu-me o poder de observar, quieta, o movimento dos outros seres humanos.
Que se danem as minhas provas. Que se danem os meus livros. Que se dane o meu TCC. Eu quero olhar para a vida dos outros e refletir. Fico encantada com a facilidade do pensamento, com a leveza do comportamento humano. A suavidade do absurdo, postado a cada segundo, sugando minha própria energia. Poderia ficar horas apenas observando minhas atualizações. São informações superficiais, mas que me dizem muito, me transformam muito, me preenchem muito.
Se Deus tivesse me dado o poder de olhar de raio X aos cinco anos, com toda a certeza minha imaginação não seria tão próspera: teria sido desgastada em observações intermináveis. Eu queria saber, fervorosamente, o que os meus vizinhos estavam fazendo. Cresci frustrada. Conheci o Big Brother e me senti salva, atendida, amada. Até o dia que eu entendi que os reality shows são controlados, uma forma bonita de manipular a massa. Aprendi que a ignorância é uma benção.
Meu tédio me levou aos livros, aos exercícios de trigonometria, aos textos sobre o futebol na Ucrânia, às pesquisas sobre comunismo e capitalismo e teorias de dominação mundial. Meu tédio fez de mim uma chata mau humorada, sempre insatisfeita, sempre curiosa, sempre infindável. Nada me basta, nada me seduz, nada me sustenta. O conhecimento tornou de mim um saco sem fundo, morto, carregado pelo vento nas ruas lotadas de pessoas mesquinhas.
Essa é a maior mágoa que eu tenho com a vida: As pessoas são felizes. Felizes e mesquinhas.
Minha felicidade assumiu uma cor escura quando eu percebi que não existia. Que não era eu, que não era meu, que não era assim. O mundo é um grande lugar redondo e colorido, mal interpretado, mal solucionado, mal convencido. E quem se importa com isso?
Em pleno século XXI, quando você pode fazer um almoço em quinze minutos no microondas e escrever sem ter calos nos dedos, quem vai se importar com a descoberta da verdade? Quem quer conhecimento? Quem quer indagar, explorar, descobrir, desvendar, quebrar, remendar? Não há tempo. Não há motivação. Meu buraco secreto na fechadura das vidas alheias me diz isso. Elas me dizem isso. As pessoas felizes e mesquinhas. Elas estão felizes com o dinheiro que mal dá pra sustentar o mês. Elas bebem cerveja, saem nos finais de semana, comem carne assada, escovam os dentes três vezes por dia, oram um pai nosso quando se sentem assustadas, compram camisinhas de morango, assistem filmes do Bruce Willis. As pessoas felizes e mesquinhas não tem tempo para o grande egoísmo que é a descoberta solitária de um mundo que não quer ser visto, que não quer existir, que não quer ser mundo.
Minha dor existencial é tão profunda e enraizada, que tenho medo de raízes, tenho medo de profundidades, tenho medo de ser o que deveria. Não me sinto no lugar certo. Não me sinto no momento certo.Não me sinto no corpo certo. Limitações. Limitações por todos os lados. Um corpo frágil. Uma existência pré-ordenada, uma expectativa de vida já prevista. Minha cabeça é enorme, desproporcional, meu cérebro quer fugir.
Meu Deus, por que me abandonastes, se sabias que eu não era Deus, se sabias que eu era fraco?*
Queria ser grande, ser feliz e preenchida. Não sou. Queria ser feliz e mesquinha. Mesquinha e egoísta. Egoísta e ignorante. A ignorância é uma benção, uma salvação, um bálsamo líquido. É o que faz com que o mundo continue sendo mundo depois de ter deixado de ser. É o que embala as canções bregas, os dias mornos, a economia assassina. Essa é a minha maior mágoa, com você, vida. Ter feito de mim, um erro da natureza. Um aborto de Gaia. Não me encaixo nesse planeta, não me sinto dentro de mim. Estou sempre além, aquém, também. Estou sempre querendo estar não estando. Meto histórias na minha cabeça, invento personagens, escuto música, bebo alcool. É uma fuga infinita da minha própria perseguição.
Sou eu seguindo meu próprio rabo, de novo e de novo, sem parar, para sempre.
Enquanto as pessoas são felizes e mesquinhas. Coçam os testículos, mastigam de boca aberta, tomam banho em pé e deixam a salada apenas pra quando se sentirem gordas. As pessoas comemoram o trabalho medíocre, o dinheiro escasso, a comida ruim. Não querem dominar o mundo, não querem ser o mundo, não tentam desvendar a alma como se a alma fosse um corpo, não querem desvendar um corpo que esconde uma alma. Muitas vezes, nem querem uma alma.
Sinto inveja e mágoa.
Felicidade, quem és tu, que me foge de perspectiva?
Quem és tu, que me manteve indigna, distante, impossível?
Darwin teria as respostas. Sou um erro da natureza. Um cuspe sugado por esse planeta errôneo. Deveria estar flutuando em meio à poeira cósmica, deixando de ser eu, tornando-me um todo. Talvez assim estivesse no lugar certo. Talvez assim o planeta estivesse em equilíbrio. Talvez, só talvez, então, eu poderia ser feliz. Feliz e mesquinha.