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sexta-feira, 28 de novembro de 2014

As Vantagens de Ser Invisível

Existem momentos na vida. Momentos em que podemos jurar que o infinito realmente existe e está dentro de nós. Hoje eu tive um desses momentos. Depois de tanto tempo sofrendo por não me sentir mais como um ser humano normal, eis que finalmente eu tive um momento de emoção completa. Você não tem muitas opções quando seu momento chega. Você só pode se entregar, ou segurar a emoção até que exploda em outro momento. Mas enquanto eu estava sentada no carro, entre a minha irmã e a minha mãe, escutando a conversa do meu irmão com a amiga dele nos bancos da frente e a brisa do mar entrando pela janela, só consegui sentir aquilo. Aquele sentimento de tristeza infinita. Quase como se, de repente, tudo estivesse desmoronando na frente dos meus olhos. E eu senti tanto amor e tanta dor ao mesmo tempo, que não pude segurar. A dor transbordou pelos meus olhos, meu corpo dava espasmos desesperados. Eu tentei ser discreta, mas meu nariz simplesmente não consegue funcionar direito quando o choro vem, então qualquer um percebe as fungadas silenciosas. Eu percebi que poderia estar com problemas psicológicos enquanto chorava dentro do carro numa manhã comum de novembro. Eu percebi que a vida tem sido muito má ultimamente e tem acontecido muitas coisas ruins. E as pessoas tem sido cruéis e os acontecimentos tem acabado com a minha esperança. E então meu aniversário tem sido uma festança infinita desde ontem. O bolo e os salgados continuam aparecendo na minha frente, surgindo em todas oportunidades. Os presentes são maravilhosos. Você não me felicitou, mas veja que engraçado, tem um cara que eu não conheço que veio no seu lugar. E isso realmente me pegou desprevenida, por que eu não sou o tipo de garota que chama a atenção de caras desconhecidos. E então também tem esse livro maravilhoso que fala sobre os traumas de tantas pessoas sob a perspectiva de um cara com problemas em lidar com a vida social. E esse livro que eu li em apenas um dia, enquanto minhas emoções afloravam, traduziu com muita perfeição o quanto a vida é dificil de ser levada. Exceto quando alguma grande entidade do universo resolve que finalmente chegou a sua hora de ser presenteada e o planeta começa a girar pro lugar certo e você sente que foi escolhida pra ser feliz. Eu não pensei que fosse dizer isso tão cedo, mas estou feliz. Absurdamente. O mais assustador é que isso não tem nada a ver com homens ou namoros ou amores ou paixões. Eu estou puramente feliz. Feliz pelas conquistas, feliz por que minha mãe me abraçou hoje enquanto eu chorava na praia depois de conseguir pisar pela primeira vez em tanto tempo dentro da agua sem que ninguem precisasse me segurar. Feliz por que meu irmão parecia ter voltado no tempo e esquecido a guerra travada entre eu e ele nos utimos anos, desde que comecei a pintar o cabelo, fazer tatuagens ou não estudar para as provas. Feliz por que o dia estava ensolarado e o calor poderia estar insuportável para todas as outras pessoas em casa ou no trabalho numa sexta-feira comum, mas para mim estava ótimo. Feliz por que eu finalmente declarei trégua ao sol e nós nos demos tão bem que eu até exagerei na dose e agora preciso disfarçar a vermelhidão dos meus ombros queimados. E esse momento, o momento em que me senti infinita, foi suficiente para tirar de mim todo o mal dentro do meu coração, o peso que tem me atirado pra baixo por tanto tempo. Essas coisas são estranhas. Charlie estava tremendamente certo quando descrevia a dificuldade que temos em lidar com as outras pessoas. Uma das vantagens de ser invisível é que você consegue perceber muito em pouco, a capacidade de interpretação corporal fica muito mais afiada. Então eu posso dizer que a felicidade foi mútua quando minha família me viu abrir os braços abaixo do sol de trinta graus e deixar que as ondas me empurrassem em direção à beira do mar. E eu posso dizer que esse foi um dos momentos mais incríveis que eu jamais pensei que teria. Por que, se você quer saber, ainda estou emocionada. Não somente pelo sol, ou pelo sorriso da minha mãe, ou pela anacronia do meu irmão ou pela emoção da minha irmã. Mas também por que eu finalmente parei de me importar com tantas coisas e decidi isso há apenas alguns dias atrás. Quando eu disse ao universo que não me importava com ele, desde que ele fizesse as coisas certas, as coisas certas começaram a acontecer por si próprias. E agora eu sinto que não preciso mais beber para amortecer a dor ou fumar para esconder o choro atrás da fumaça. Eu sinto que esse amor dentro de mim precisa ser demonstrado. E sinto um êxtase anormal por também ter revolucionado a história do meu rendimento acadêmico. É como se, pela primeira vez em muitíssimo tempo, ser a pessoa que eu sou fosse a coisa correta a se fazer. Não que eu tenha muita escolha, mas posso dizer que estou feliz em ser quem sou. E isso também me dá vontade de chorar, mas acho que minhas emoções estão fragilizadas graças ao sol e ao sal e ao sorriso da minha mãe. E também tenha alguma coisa a ver com os pastéis e as empadas e o bolo surpresa que é o meu preferido e todo mundo resolveu comprar pra mim. Só espero que esse momento seja eterno na grande imensidão de momentos efêmeros.. E que eu consiga, ao menos mais alguma vez na vida, me sentir infinita.

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Epifania Monocromática

Eu cansei de cavar o poço. Cansei de sofrer e continuar procurando mais sofrimento. O alcool e o tabaco são distrações, formas mais simples de lidar com a dor. Mas eu estou simplesmente tão cansada de tentar lidar com isso. Com a vontade de me jogar de um precipício e sair nadando em direção ao nada. Estou tão cansada de sentir a alma latejar. Eu andei procurando por maneiras mais baratas de lidar com esse sentimento de impotência. Não encontrei muitas saídas. Tudo que eu encontrei foram mais motivos pra continuar lutando. Não é possível que a vida se resuma a isso. Que a morte do amor seja maior do que a minha vontade de desbravar o mundo. Não posso aceitar morrer assim. Dei por conta disso hoje, quando acordei depois de 12 horas em coma de ressaca e coloquei todo o meu estômago pra fora em um líquido viscoso e amargo. Algo que eu gosto de chamar de o vômito da dor. O vômito da dor me fez perceber que eu ainda não morreria, só precisava expelir de mim tudo que me fazia mal. Depois de ver o mundo girando por um dia e meio, nada como colocar todos os resquícios de sentimentos ruins para fora. Então percebi. Percebi que não queria morrer. Por que, acredite, eu pensei que fosse. Hoje, lá pelas 6 horas da manhã, quando me dopei de dramin rezando para que o enjôo passasse depois de uma noite inteira sonhando com coisas malucas. Meu corpo inteiro vibrava, sentia minha cabeça despencando. Quase morri.

Percebi que estava desejando agulhas com soro nas minhas veias, um hospital com cheiro de morfina e um enfermeiro que seria doce na medida certa, com suas roupas brancas sorrindo para mim enquanto eu fechasse meus olhos e fosse para um mundo sem dor. Percebi que quase estava morrendo. Meu esôfago queimava. Senti o estômago dar pulos. Comecei a conversar com Deus. Pedi desculpas por ser rebelde. Depois implorei por misericórdia. Por favor, Deus, não me deixe morrer. Por favor, Deus, me ajude a vomitar. Por favor, Deus, eu juro que não beberei até 2015. E assim foi. O estômago recobrou as forças e conseguiu expelir de mim o alcool acumulado com o bolo de chocolate que não me fez bem. As doze horas de coma silencioso saíram de dentro de mim. Sobrou a vontade, a ansiedade, a monotonia dos dias ganhos. Sobrou uma vida com expectativa de sessenta anos e meio de dor e alegria. Não estou preparada para morrer, disse eu a Deus. Não estou preparada para largar tudo e me acovardar no mundo dos mortos, disse eu a Deus. Não vou beber mais, disse eu a Deus. E assim será feito. Até que Deus seja esquecido novamente e venha cobrar minhas promessas diretamente nos portões do inferno. Até que eu perceba que o poço sem fim dos meus dias não irá me levar a lugar algum além do chão. Eu precisei levantar e ir caminhar no sol respirando o cheiro do verão para perceber que cavar e cavar só vai me levar mais ao fundo. Não se tem notícias de ninguem que tenha cavado e saído no Japão, por exemplo. Peter Pan não chegou na Terra do Nunca atravessando um poço. Peter Parker não enfrentou milhões de vilões choramingando num poço. A única personagem do mundo atual que se deu bem foi a Samara de O Chamado. A única que morreu e saiu do poço para contar a história. E, mesmo assim, não acabou bem.


Percebi hoje, enquanto tremia e vomitava dentro do meu proprio poço e tentava limpar minhas mãos sujas de barro na bainha do shorts, que ninguém mais vai vir me dar bandaids. Eu passei muito tempo sendo curada por outras pessoas. Me acostumei a esperar que alguém pulasse dentro do poço e o tornasse mais bonito. Me acostumei a olhar pra cima implorando por companhia e ser brindada por duas, três, quatro de cada vez. Me acostumei a não curar a mim mesma, mas ser curada por obra do destino. Veja só que irônico, não curou. Somente deu conta de feridas superficiais. Seria muito mais saudável se o ferimento tivesse cicatrizado e sumido para sempre. Não sumiu. Estou há muito tempo nesse poço esperando por ajuda. Mas toda a ajuda foi embora. Agora resta somente eu. Me comunicando com pessoas presas dentro de seus próprios poços. Percebendo que precisamos aprender a sair sozinhas de dentro desse lugar. Não sei como vou fazer isso, mas estou começando a escalar. Os tijolos são escorregadios, minhas mãos não alcaçam alguns. O pé da prótese atrapalha na subida. Os músculos dos braços estão ainda em desenvolvimento. Mas posso ver o sol. Posso ver uma caixa inteira de bandaids e um pote de morfina no meio do caminho. Se for necessário vou injetar algumas doses, apenas para conseguir lidar com a escalada. Mas vou conseguir sair, disse eu a Deus. Mesmo que todos os ateus estejam certos e você não exista, vou conseguir sair. Mesmo que as outras pessoas insistam que estar no poço é mais confortável. Estou muito cansada para continuar esperando ajuda. Quero ver a felicidade pelos meus próprios olhos. Adeus, poço. Foi bom enquanto durou. 

Ontem arranquei uma casquinha dura do meu tornozelo. Sangrou pra caramba, até que secou e se formou outra casquinha em cima. Percebi que não posso lutar contra todas as feridas. Vou precisar dar o tempo necessários para que se curem sozinhas. 

domingo, 16 de novembro de 2014

Psicose

Nunca gostei de limpar a casa. Nunca fui a primeira a levantar a mão na hora que a mãe oferecia uma recompensa pra quem lavasse a louça primeiro. Preferia passar o mês inteiro catando moedas nos bolsos alheios do que ganhar mesada por ser prendada. Então, você deve imaginar como é estranho quando eu me pego com a vontade de limpar a casa num domingo. É nesse momento que eu percebo que tem alguma coisa errada. Pego o esfregão de aço, a esponja e o detergente e resolvo que vou decifrar todos os problemas mais profundos e casca grossa da pia e do fogão. Fico ali, por horas esfregando uma sujeira que há anos não sai do metal. É nesse momento que percebo o quanto me sinto suja por dentro. Cheia de problemas não resolvidos que precisam ser limpados. Mas, diferentemente da louça ou do fogão que a gente pode aplicar toda a força dos músculos do braço pra resolver, não consigo achar solução para os meus problemas. Não consigo ver uma saída para a dor.

Nunca gostei de casquinhas na cicatriz. O processo de cicatrização do meu corpo é muito lento, demorado mesmo. Cria uma casquinha dura, que me incomoda pra caramba. Quando eu tinha cerca de cinco anos, lembro que passava o dia inteiro pulando em árvores ou correndo atrás dos meus gatos e cachorros na rua. Isso me dava milhões de casquinhas. E eu, como inimiga numero um da cicatrização natural, ia lá todos os dias e coçava ao redor. Coçava, coçava até ficar vermelho. E daí a cicatrização já em processo mais maduro, coçava também por dentro. E, cara, como eu odiava ter que esperar a casquinha cair sozinha. "Se tu arrancar, vai ficar com a marca pra sempre", avisava minha mãe. Nunca me importei com marcas pra sempre, desde que eu pudesse arrancar aquela porcaria e me ver livre de casquinhas idiotas. Não mudei muito. Continuo preferindo ver o sangue jorrar a ter que aguardar pacientemente que a casquinha caia pela vontade do universo. E é quando lembro disso que me percebo melhor. Minhas casquinhas da alma não cicatrizaram ainda, mas eu insisto em arrancar todas com as unhas e dentes, preferindo que ardam a ter que esperar que se curem sozinhas.

Não consigo lidar com o tempo direito. Sempre pensei que fosse alguma coisa a ver com a minha ansiedade. Ansiedade comum, ansiedade boa. Com passarinhos no estômago, coração acelerado, vontade de vida. Mas não. Percebo agora, quando estou com as minhas palpitações elevadas e a vontade de morrer aumentado, que talvez eu tenha algum problema mais grave. E não sei como lidar. Não sei como diminuir a sensação de que o mundo gira rápido demais e me encolhe a cada segundo. Não sei como parar de pensar em todos os problemas da minha vida e da vida das outras pessoas. Eu busco por soluções, distrações, maneiras diferentes de lidar com a dor. Nada adianta. Eu tento lidar com os problemas quando faço coisas estúpidas, quando ponho uma lista de objetivos na minha cabeça. E, se de alguma maneira eu não cumprir essa lista, isso me deixa ansiosa também. Me faz sentir pequena e encolhendo, meu peito se fecha, curvado em cima do meu coração. Sinto os pulmões menores, o ar passando com dificuldade, as costelas cada vez mais apertadas. Quase como se minha alma estivesse rebelde, tentando explodir para fora do meu corpo e ir tentar a vida de outra maneira.

Tenho medo. Medo de acabar sozinha e presa em uma camisa de força. Imaginando todas as coisas que eu deveria fazer na minha lista de coisas para fazer antes de morrer. Tenho medo que as palpitações levem embora o sabor da comida ou a beleza do banal. Por que o banal é bonito. A praia é bonita. As coisas tranquilas da vida são bonitas. Eu só não sei disso por que talvez realmente tenha algum problema no meu cérebro. E então tudo vai fazer sentido. Talvez a loucura que tanto me incomode nos outros passe a ter outro timbre quando a minha própria loucura for acalmada. Talvez eu seja a pessoa louca em um mundo de sanidade pré-distribuída em cartelas de lítio. E tudo pelo que eu tenho esperado a minha vida inteira, é uma cartela cheia de soluções para a minha insanidade.